A Vida Secreta de Meus Três Homens (2025)

Vítimas e algozes

título original (ano)
A Vida Secreta de Meus Três Homens (2025)
país
Brasil
linguagem
Drama, Documentário
duração
75 minutos
direção
Letícia Simões
elenco
Murilo Sampaio, Giordano Castro, Guga Patriota, Nash Laila, Letícia Simões
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

Pai, avô e padrinho. Ao evocar sua família, a diretora Letícia Simões se volta especificamente às figuras masculinas que a precederam e formaram. Depois de dedicar um filme bastante provocador à mãe (Casa, 2019), agora ela equilibra os olhares, investigando a conduta destas figuras de autoridade. Encontra, como fio condutor entre os três, a existência de segredos: o avô integrou o bando de Lampião; o pai foi delator do SNI, contribuindo com a ditadura militar; e o padrinho escondeu sua homossexualidade, tendo amado a vítima de um crime homofóbico.

A equivalência entre estes três segredos pode soar curiosa, ao serem considerados dignos de posicionamento num mesmo patamar. Há comparação possível entre um homem que oculta sua conivência com crimes de Estado, outro que participou de um movimento que enfrentava as forças do Estado, e aquele obrigado a ocultar sua afetividade devido às pressões sociais? Em outras palavras, é possível equiparar a dor sofrida e a dor infligida; o segredo do trauma provocado e o segredo do trauma sofrido? Eticamente, podemos equiparar algozes e as vítimas? A cineasta acredita que sim. 

Por isso, divide seu filme em três partes distintas, de durações semelhantes, para cada um dos personagens listados acima. Convida atores e atrizes a encarnarem estas figuras numa encenação sem pretensões naturalistas, apenas simbólicas. Guga Patriota encarna o avô, Giordano Castro faz as vezes do pai, e Murilo Sampaio interpreta o padrinho, ao passo que Nash Laila dá vida à própria diretora. Isso não impede que a autora se coloque em cena, numa mesa de ensaios, respondendo às perguntas do elenco. “Você teria alguma coisa a falar para [você mesma quando criança]?”. “Não”

Quais as implicações de ter na mesma família um cangaceiro, um colaboracionista e um sujeito gay? Mistério. Permanecemos no domínio da constatação dos fatos: estes homens existiram.

Simões estabelece um jogo de cena, movido por regras variadas em cada segmento. Inicialmente, dirige Patriota de modo que sua confissão soe espontânea, de fala livre. A atriz parece não possuir um texto exato no qual se basear, somente indicações de tópicos a mencionar ao longo do relato sobre o período passado no cangaço. Ela veste um vestido, pois a cineasta estima que o avô possuía uma força feminina — qualidade nunca explicada, de fato, a seguir. Estamos no domínio das impressões, ao invés dos fatos. Este é um filme sobre o olhar da autora para os três homens, ao invés de revelações comprovadas acerca deles.

Isso justifica que o segmento envolvendo o pai parta da dedução de seu cargo delator do SNI — algo impossível de comprovar, segundo a artista. Mesmo assim, o cruzamento de fotos e os indícios de seus deslocamentos apontariam nesta direção. O que significa, para a mulher progressista, ter sido criada por um pai conivente com o regime sanguinário? Não se sabe ao certo. A narrativa prefere expor estas informações a tirar conclusões acerca das comparações efetuadas em todo o longa-metragem, desde o conceito ao título, passando pelo roteiro e pela montagem. 

Quais as implicações de ter na mesma família, em sucessivas gerações, um cangaceiro, um colaboracionista e um sujeito gay? Mistério. Permanecemos no domínio da constatação dos fatos: eles existiram, e assim se portaram durante as suas vidas. O fato de terem falecido constitui outra demarcação evidente em relação a Casa, filme efetuado com a mãe da cineasta. Desta vez, trata-se de uma iniciativa sobre pessoas ausentes, o que permite à diretora, em sua concepção, implementar o dispositivo cênico. “A maior força que a gente tem é inventar, é fabular a partir das violências”, estima.

No terço dedicado ao pai, recriam-se interações entre ambos numa mesa, ao lado das águas. A captação ocorre em película, para remeter às décadas anteriores. Em outros instantes, são empregados materiais de arquivo (o famoso filme sobre o bando de Lampião) e animações — recursos que não retornam. A criadora permite atender às memórias sob medida, atingindo um resultado que poderia ser considerado criativo e ousado, ou então pouco coerente, dependendo do ponto de vista. Mesmo assim, no final, surgem os letreiros explicativos, habituais em documentários didáticos, assim como as fotos dos três homens, permitindo compará-los às representações fictícias — como se a encenação não bastasse, precisando do real para legitimá-la.

Talvez o segmento mais questionável seja aquele consagrado ao padrinho. Se os dois homens anteriores eram sujeitos de violências (o avô espancou a esposa, deixando-a numa cadeira de rodas), o último foi vítima dos gestos alheios. Desta vez, o ator Murilo Sampaio parece trabalhar a partir de um texto preciso, permitindo menos improvisos. Ele inicia a sua fala com os olhos marejados, e segue chorando a partir dali. Opta por uma construção sublinhada da “bicha”, reafirmando a voz efeminada, o sorriso ao final de cada frase, o olhar de sedução para a câmera que o observa.

Entramos no domínio melodramático do sofrimento gay — quando se estima, a exemplo da tradição do cinema clássico, que a melhor homenagem a uma vítima de homofobia residiria na afirmação espetacular de sua dor. O plano se fecha no rosto do ator, que fala diretamente às câmeras, ao contrário dos colegas de elenco. O registro se torna mais próximo de um teatro impressionista, educativo — veja só, como foi dura a vida destas pessoas. Jogos metalinguísticos anteriores, a exemplo de Patriota iluminando o próprio rosto com um espelho, são dispensados. Agora, importa apenas o choro e a emoção.

A Vida Secreta de Meus Três Homens se encerra na forma de uma exposição cuidadosa, porém incompleta. O filme carece de uma síntese, na qual Simões apresentaria suas conclusões a partir da hipótese afirmada, relacionadas à impunidade masculina. Como ela se sente, tendo referenciais tão díspares em seu percurso pessoal? A obra soa, ao mesmo tempo, extremamente próxima, mas também muito distante da artista. Por um lado, trata-se de uma exposição sincera de si, e da própria imagem para as câmeras. Por outro lado, ao explicar que o pai a levava, quando criança, para prostíbulos, a cineasta se limita a afirmar que achava o gesto divertido.

Assim, para o espectador, ressente-se de uma reflexão a partir dos homens representados e recriados para nossos olhos. Por que Simões os estimava dignos de um longa-metragem recordando suas trajetórias? O que nos pretende dizer a partir deles? A obra não constitui um manifesto contra o domínio patriarcal, nem um acerto de contas com traumas profundos. Não se interessa pela psicologia da mulher colocada em cadeira de rodas, tampouco investiga os colegas próximos do pai colaborador. Não compreende como o avô interpretava o cangaço, para além de sua negação dos abusos cometidos por cangaceiros contra mulheres. 

O filme se limita a afirmar que tudo isso existiu em um momento preciso e, que, por acaso, estas figuras ocupam sua árvore genealógica. Ça a été, como diria Barthes — em algum instante, isso ocorreu. Em se tratando de momentos tão sensíveis da história brasileira, tocando em posicionamentos ideológicos tão díspares, e de gerações distintas, faz falta um posicionamento assertivo da criadora a respeito dos gestos e individualidades retratados. Ela cria um dispositivo funcional, maleável, habitado por bons atores e atrizes. No entanto, podemos falar em uma autora presente em imagens e informações, mas não o suficiente na elaboração intelectual de seu próprio gesto.

A Vida Secreta de Meus Três Homens (2025)
6
Nota 6/10

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