Aftersun (2022)

Carta ao pai

título original (ano)
Aftersun (2022)
país
Reino Unido
gênero
Drama
duração
98 minutos
direção
Charlotte Wells
elenco
Paul Mescal, Frankie Corio, Celia Rowlson-Hall
visto em
46ª Mostra de São Paulo (2022)

A proposta por trás de Aftersun (2022) não se desvenda de imediato. Isso porque o drama apresenta um cenário propício a conflitos: pai e filha viajam juntos para um resort na Turquia, quando experimentam uma nova cultura, em tempo integral juntos, além das peripécias comuns a uma viagem. Há problemas na reserva do quarto; a filha pré-adolescente experimenta seu primeiro beijo, e o jovem pai demonstra um desconforto crescente e misterioso ao longo dos dias. Ou seja, está armado o terreno para brigas, reconciliações, descobertas e lições de vida.

No entanto, nada disso ocorre ao longo da narrativa. A priori, este seria um drama sem conflitos, no sentido de nunca apresentar vontades contrárias, dilemas difíceis de superar, ou embates que produzam transformações nos personagens. Cada uma das atividades mencionadas acima é solucionada sem sofrimento ou felicidade, de maneira quase inconsequente: na ausência das duas camas de solteiro, aceita-se a cama de casal, sem problema. A filha experimentou o primeiro beijo? Tudo bem. “Se precisar de qualquer coisa, fala comigo”, insiste o pai atencioso. O pai chora escondido no quarto? Ora, na manhã seguinte, volta a desempenhar suas atividades comuns. 

Em outras palavras, há uma complexidade psicológica evidente nos personagens principais, além de motivos para que briguem e façam as pazes. No entanto, a diretora Charlotte Wells prefere abordar este episódio pelo prisma da memória afetiva: em se tratando de uma lembrança real, de décadas atrás (a jovem Sophie é apresentada em versão adulta, em paralelo à infância), a criadora prefere relembrar os instantes de ternura, das agradáveis provocações, ao invés do teor melancólico que visivelmente permeou a viagem. 

A proposta resulta num teor impressionista, onde o afeto jamais se confunde com condescendência, e a lembrança nunca se transforma em homenagem.

Ela confere papel significativo a pequenos símbolos (a câmera de vídeo, a dificuldade de se expor em público, as cenas de pai e filha na cama e na sacada) ao invés dos contextos que justificam a origem e a consequência da viagem. Em que circunstâncias os pais se separaram? Como o relacionamento da garota com o pai se transformou a partir do divórcio? Por que estas férias seriam mais marcantes do que as demais, justificando um longa-metragem inteiro? Pouco se sabe. Wells não visa justificar, nem elaborar racionalmente o ocorrido. Pelo contrário, privilegia a jornada de sensações.

Logo, a direção de foca num olhar concentrado e sonhador. Aftersun valoriza os planos extremamente próximos de rostos, partes do corpo e objetos, ao invés dos planos de conjunto capazes de valorizar o espaço. Sempre que possível, brinca com desfoques variados da profundidade de campo, explorando a granulação da imagem digital antiga, com a sombra projetada na água da piscina, o reflexo de pai e filha na televisão do hotel, os parapentes sobrevoando os céus. Em dado momento, Sophie pensa na beleza de compartilhar o céu com o pai, Calum, de estarem presentes e vivos, em simultâneo, sob a mesma imagem. Mas este não entende o que ela quer dizer.

Aqui, a poesia não se transforma necessariamente em doçura, em atenuação. A diretora constrói uma simbologia terna, porém bruta e silenciosa ao mesmo tempo. Nada de trilha sonora junto às metáforas de céu e água; nada de planos próximos nas raras manifestações de sentimentos; nenhum clímax capaz de condensar as tristezas ou alegrias, ou de representar um expurgo emocional. Ao que tudo indica, a dupla encerra esta viagem sem perceber a importância que viria a ter para ambos futuramente. Anos depois, eles brigariam, se afastariam, conforme atesta a angustiante sequência na casa noturna. No entanto, ali, neste passado indefinido, encontraram-se de maneira única. 

Em consequência, este seria um filme de saudades, mas também uma obra desencantada, por se lembrar de uma beleza que nunca voltará. O presente é frio, mecânico: Sophie adulta é acordada de madrugada para cuidar do próprio bebê. Está cansada, e a maternidade se afasta da representação de um idílio. Hoje, talvez compreenda a dificuldade do pai naquele momento, como não pôde compreender na época. O projeto sustenta esta aparência de álbum de retratos, de polaroide encontrada décadas depois, remetendo a um período gostoso e já esquecido. Wells reconstitui este fragmento de vida com doses iguais de carinho e amargor.

A proposta resulta num teor impressionista, onde o afeto jamais se confunde com condescendência, e a lembrança nunca se transforma em homenagem. Existe um saudável distanciamento no ponto de vista, uma tentativa de ser cúmplice o suficiente, porém sem se tornar invasivo, nem explicar as ações de cada um. Há uma cota considerável de mistérios por trás dos estados de espírito de Calum e Sophie. Talvez aí resida o aspecto mais respeitoso da abordagem: a tentativa de esmiuçar as contradições das pessoas sem fazer a questão de esclarecê-las ao espectador. 

Para um papel tão denso, os atores principais se saem muitíssimo bem. Paul Mescal combina a alegria juvenil, quase irresponsável, com instantes de preocupação mais paterna, e outros, de uma depressão e melancolia que o personagem se esforça em esconder. A pequena Francesca Corio é excelente pela espontaneidade que consegue demonstrar apesar das falas bem construídas, da câmera colada ao rosto e ao corpo. Ela se prova capaz de um jogo cênico de igual para igual com o ator mais velho e experiente, numa dinâmica mista entre a espontaneidade e a preparação cuidadosa de atores.

No que diz respeito à comunicação, a qualidade mais notável da obra se encontra na capacidade de ser acessível a um público amplo, que não necessariamente consuma filmes de arte herméticos, enquanto adota uma estrutura narrativa longe dos dramas convencionais (a ausência de conflitos, os tempos mortos, a construção simbólica das ações e metáforas). Wells consegue se situar a meio-termo entre o filme “de arte”, presente em festivais (Aftersun foi selecionado em Cannes, Toronto, Telluride e New York Film Festival), e a obra de família, focada em temas e personagens de fácil reconhecimento e identificação. Esta é uma proeza considerável.

Aftersun (2022)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.