Adam é um super-homem. Preso por terroristas na África, solta-se do cativeiro em segundos, literalmente, antes de salvar uma mocinha em perigo e matar dezenas de capangas. Ao se deparar com o guarda-costas de um dos maiores mafiosos da França, destrói sem dificuldades o homem mais alto e forte do que ele. Ciente de que os seguranças de uma boate sofrem com o ataque de uma gangue, dirige-se até a saída do local e destrói meia dúzia de adversários sozinho, no soco e no chute. Após levar uma bala no abdômen, grampeia a região, coloca uma faixa ao redor e volta a trabalhar — a dor é para os fracos.
No entanto, as proezas não se limitam ao corpo a corpo com os inimigos. O herói deste filme de ação ainda se mostra paciente com crianças, tolerante com adolescentes rebeldes, e uma figura paterna fiel quando os verdadeiros pais estão ausentes. Sujeito de poucas palavras, ele acata ordens fielmente, desviando dos planos apenas para visa salvar menininhas doentes. Ponderado, irrita-se de fato somente face à descoberta de alguma injustiça no mundo. Neste caso, quebra computadores e lança garrafas d’água pelos ares, por ser uma figura passional demais.
É curioso encontrar, em pleno 2023, um protagonista saudoso do cinema norte-americano dos anos 1980. Sem senso de humor, sem autoironia, sem um ponto de vista atualizado a respeito das relações sociopolíticas — aqui, os terroristas são homens negros e africanos; os serviçais provêm do Magrebe; as mulheres pouco confiáveis possuem identidade eslava, além de filhos de casamento anteriores. Eles orbitam em torno dos verdadeiros protagonistas, todos eles homens, brancos, fortes e franceses. No final, a polícia terá salvado o mundo, graças à coragem e senso de justiça implacável de um homem só.
O discurso se mostra anacrônico. Corresponde, no sentido literal do termo, a uma empreitada reacionária — ou seja, uma lembrança daqueles bons tempos em que a ação era comandada por sujeitos musculosos, ao invés de heroínas de ação ou dos novos protagonistas engraçados e falhos (vide os novos Thor, Capitão América, James Bond, etc.). Os homens de ação correspondiam a forças brutas, sem opinião própria, nem amores, dúvidas morais ou ambiguidades. Aproximavam-se do ideal da máquina, para o qual a eficiência se encontraria na ausência de sentimentos. Pense num misto de Rambo e Robocop, transposto à França contemporânea.
É curioso encontrar, em pleno 2023, um protagonista saudoso do cinema norte-americano dos anos 1980. Sem senso de humor, sem autoironia, sem um ponto de vista atualizado a respeito das relações sociopolíticas.
Neste contexto, mulheres e crianças (e a fusão máxima da ambas: as garotinhas) existem apenas como chantagem emocional e prova de coragem à potência masculina. Elas servem a sofrer durante um ataque, precisando de resgate perigoso em pleno tiroteio. Agente Infiltrado começa com a soltura de uma jornalista graças à coragem de Adam. Em seguida, ele salvará um garotinho (duas vezes), uma menina pequena e uma adolescente, além de fornecer pistas capazes de proteger uma mulher adulta. Suas virtudes se tornam tão morais quanto físicas: neste universo fictício, o sujeito infiltrado corresponde a um anjo capaz de afetar e modificar a vida de todos ao redor.
Ironicamente, o ator Alban Lenoir oferece a si próprio este papel. Na função de co-roteirista, junto ao diretor Morgan S. Dalibert, idealiza ao máximo o brutamontes sem falhas. Ele próprio imagina um semi striptease ao chefe, para exibir as marcas de bala no corpo; a imagem aleatória de seu traseiro na cadeia, e brincadeiras que voltam invariavelmente ao pênis e aos testículos. “Estou com dor nas costas”, reclama um capanga, ao que o outro responde: “E eu que estou com dor nas bolas?”. Este é o nível do diálogo repleto de verbos imperativos, de ordens e exigências. Ninguém se interrompe para pensar, refletir, cogitar, ouvir o ponto de vista alheio. “Arrume isso”, “Dê um jeito”, “Acabe com essa história essa noite”, declara um detestável ministro. “Sim, senhor”, respondem todos.
No que diz respeito à mise en scène da ação, o cineasta também aposta numa linguagem de décadas atrás. Nada dos planos longuíssimos e bem coreografados de John Wick, nem do uso de espaços de Missão Impossível. A ação é fragmentada, veloz, em planos próximos que confundem ao invés de esclarecer. A fuga inicial do cativeiro africano ocorre em meio a explosões que surgem sabe-se lá de onde, apenas para efeito dramático. Tiros e fogo servem de ornamento ao quadro, para brilharem e valorizarem a silhueta do homem forte. O mesmo pode ser dito da maquiagem de ferimentos no rosto, relembrando a resistência do protagonista, e necessitando os cuidados maternos de mulheres gentis e sedutoras, em duas oportunidades.
Por fim, Agente Infiltrado transmite a admiração por um mundo de fetiches. Trabalha-se com o imaginário coletivo, antigo e conservador, de tipos preestabelecidos: o mafioso, o drogado, a prostituta, o agente, o terrorista. Sabe-se, apenas pelo rótulo, qual deles seria homem e qual seria mulher; qual seria forte e qual seria fraco; qual seria digno e admirável, e qual seria desprezível. Os personagens sustentam posições intercambiáveis, pois destituídos de subjetividade, de uma fala própria, de objetivos independentes, de paixões. Qualquer desvio da rota se tornará uma traição inesperada, ou seja, um motor de tensão e espetáculo, como tudo neste filme.
Compreende-se que muitos espectadores ainda gostem deste show direitista em todos os sentidos do termo, tanto pela compreensão de mundo quando pela idolatria erótica da virilidade, em detrimento da delicadeza percebida como atributo feminino, de debilidade. Ele se mostra tão bruto quanto simples na maneira de resolver os problemas. Há uma criança em perigo dentro de um prédio com dezenas de sujeitos fortemente armados? Tudo bem, vou lá buscar. Preciso informar ao público sobre o passado de dois personagens? Tranquilo, é só enfiar um flashback abrupto na edição. Desejo colocar um coadjuvante em perigo, mas poupá-lo até o final da trama? Sem problema, basta introduzir a figura de um terceiro homem chegando por trás, e atirando no atirador — recurso utilizado três vezes ao longo da narrativa.
Estas produções originais Netflix (o filme vem da filial francesa) resgatam um prazer simples, um desejo do mundo onde “homem era homem e mulher era mulher”, onde policial era forte e destemido, e bandidos mereciam a morte. Havia gente de bem e gente de mal, e os dilemas se resolviam na bala, sem que organizações ou leis viessem atrapalhar o acerto de contas. Trata-se de um elogio ao impulso, à ação, aos músculos, à virilidade. Na televisão, pelo menos, espectadores ainda podem sonhar com um universo desprovido de complexidades, como apenas uma caricatura poderia oferecer.