Janaína (Mayara Santos) é descrita, em primeiro lugar, enquanto uma jovem inteligente, dedicada e responsável. Ela sai de uma festa e, ao chegar em casa, preocupa-se em não acordar a mãe. Conquista uma disputada oportunidade de monitoria na faculdade de direito, e dispensa convites para assistir à televisão com a mãe e a avó, ou para sair à noite, porque precisa estudar. Por isso, quando a garota se descobre grávida, o filme nunca a culpabiliza por ser inconsequente, descuidada, ou algo do gênero. Ela inclusive usava camisinha com o namorado. Trata-se de um acidente, portanto.
Esta precaução em respeitar a integridade e subjetividade da heroína se mantém ao longo de toda a projeção. A diretora e roteirista Milena Times garante que, ao decidir por uma interrupção da gravidez, e a estudante não seja contestada por ninguém, nem tenha que justificar sua escolha. A decisão cabe apenas a ela. Janaína escuta o namorado, porém verbaliza seus planos de maneira inequívoca. O aborto surge como opção racional e ponderada após várias noites de sono. Evita-se a perspectiva de uma resolução emotiva, desesperada, da qual ela pudesse se arrepender mais tarde.
O olhar afetuoso se encontra igualmente no retrato das demais mulheres desta trama quase inteiramente feminina. Em momentos de necessidade, quando precisa de acolhimento, a protagonista recebe ajuda da melhor amiga, de outra colega de classe, da professora preferida, da mãe, da avó. O namorado se mostra cúmplice (fugindo ao estereótipo do companheiro machista), porém de maneira discreta, com pouco investimento pessoal. Em instantes de aperto, Janaína recorre ao círculo de mulheres ao redor.
Os afetos se mostram palpáveis, graças a atuações competentes e homogêneas. No entanto, a mise en scène se torna rígida, avessa a qualquer forma de dinamismo, de furor, de ousadia.
A cineasta desenha, assim, a crônica de um Brasil de classe média-baixa, com dificuldades para pagar as contas, vivendo de empregos mal remunerados. As personagens se encontram tão distantes da miséria quanto do conforto econômico. Elas satisfazem todas as necessidades básicas e possuem opções de lazer, ainda que vivam em lares modestos. As chefes de família são mulheres (incluindo do núcleo de Kelly), o que aponta à ausência dos pais sem precisar problematizá-la enquanto tal. Este retrato de Recife, entre centro e periferia, passa sobretudo pela sobrevivência feminina (o namorado certamente não perdeu noites em claro, assim como Janaína, após a descoberta da gravidez).
Os afetos se mostram palpáveis, graças a atuações competentes e homogêneas — além da sólida Mayara Santos no papel central, Clau Barros e Bárbara Vitória estão muito confortáveis com os diálogos, e verossímeis na proximidade com a personagem central. Além disso, chama a atenção a composição de uma equipe quase inteiramente feminina chefiando as principais funções artísticas (produção, direção de arte, montagem, direção de fotografia, etc.). A coerência no gesto e no olhar ultrapassa o domínio da ficção.
Em meio a tantas qualidades, lamenta-se que a construção imagética se mostre tão limitada. Ainda Não É Amanhã é composto quase unicamente por imagens com as personagens rigidamente posicionadas no centro do quadro. Quando fogem minimamente do eixo central, a câmera corre para se reajustar. Nos diálogos a dois, cada corpo ocupa um terço exato do enquadramento. Os fundos permanecem desfocados (ou seja, com profundidade de campo reduzida), enquanto o som é desprovido de ruídos, asperezas, insinuações. Transita-se por salas de aula silenciosas e comportadas; espaços externos praticamente vazios; e casas inertes, apesar da vida atribulada das personagens centrais.
Logo, a mise en scène se torna rígida, avessa a qualquer forma de dinamismo, de furor, de ousadia. Este é um filme movido por alguns riscos narrativos, porém nenhum risco estético. As composições se repetem tanto que despertam a curiosa sensação de um filme pronto para a exibição em telefones celulares: caso alguém recorte apenas a tira vertical no centro da imagem, encontrará todos os rostos, corpos e pontos de interesse da cineasta e da diretora de fotografia. Não se aproveita o resto do enquadramento: a tela do cinema soa como uma pintura onde as cores ocupam apenas uma faixa ao centro.
Em curtos instantes, o drama parece sugerir alguma forma de poesia: uma mão azulada mergulha nas águas do mar; o corpo de Janaína flutua enquanto luzes azuis-esverdeadas banham seu corpo. São recursos interessantes, ainda que curtíssimos, e de impacto nulo no restante da trama — o plano seguinte já retorna a um academicismo implacável. As metáforas das estantes de livros se apertando sobre Janaína, e dos familiares encarando a jovem dentro do ônibus resultam tão óbvias em sua leitura que se aproximam do efeito humorístico.
De resto, temos uma extensa sucessão de rostos silenciosos e preocupados da atriz principal, a quem não se fornece nenhuma oportunidade de extravasar poeticamente a dor, a dúvida, a angústia, o medo. Janaína sofre em silêncio e, apesar do carinho das mulheres de sua vida, o filme ainda a observa com um distanciamento hermético, deixando que parte considerável de sua psicologia permaneça indecifrável ao espectador. Times registra a expressão da estudante angustiada, porém sem representar de fato sua angústia, nem o turbilhão que a invade por dentro.
Assim, realiza uma pequena obra eficaz dentro da cartilha do realismo social (a câmera acompanhando cada passo de Janaína; a predileção por tudo o que se exterioriza no corpo). No entanto, transmite um gesto cinematográfico acanhado, avesso a qualquer sugestão estética de uma violência psíquica. Seria fundamental pensar em novas formas de enquadrar, de mover a imagem, de trabalhar com sons, trilhas, metáforas — alguma fantasia capaz de ilustrar o estado interno da mulher em luta. Nós a observamos com respeito e empatia, porém sem conhecer de fato a complexidade de seus sentimentos.