Entre as dezenas de biografias musicais que o cinema brasileiro produz anualmente, raras são dedicadas a artistas de pouco, ou nenhum, sucesso popular. Homenageiam-se os líderes da Tropicália, as principais vozes de algum movimento, o musicista destacado em orquestras internacionais e pioneiro dentro de um gênero e iniciativa. Ora, talvez Alan do Rap não se insira em nenhum destes casos. O rapaz nunca teve um show próprio, nem patrocínio, e muito menos o apreço popular.
O interesse dos diretores Diego Lisboa e Daniel Lisboa pelo artista baiano surge de vários motivos: eram amigos próximos, e os dois estimulavam a persistência do protagonista na carreira artística, embora a precariedade financeira o aproximasse do mundo do crime. Além disso, a dupla acredita no valor da música produzida pelo rapaz, tendo sido reconhecido em vida ou não. Eles estão dedicados a prová-lo num filme-homenagem, afetuoso e unilateral, honrando aquele que raramente teve honrarias ao longo do pouco tempo de existência.
Deste modo, o filme se articula através de oposições claras: o evidente talento contra o ínfimo sucesso; a riqueza de pensamentos e palavras contra a pobreza material que o cercava. Alan ocupa um barraco precário, apenas parcialmente coberto de tábuas de madeira, e sofre com a fome. Envolve-se com drogas, com o crime, e aparece com os dentes quebrados, o pé machucado, uma bala alojada no corpo.
Trata-se de um marginal entre os marginais, alguém cujo talento nunca se traduziu na compreensão das regras do mercado. Alan do Rap seguiu invadindo o palco de artistas famosos (Alpha Blondy, Racionais MC’s) e apresentando seus versos durante alguns minutos, antes de ser retirado por seguranças. Aqueles que o conheciam de fato, a exemplo dos cineastas e outros amigos retratados, sabiam do potencial que o jovem possuía, antes de ser exterminado por policiais.
O melhor aspecto do filme provém da excelente montagem. […] Os criadores abraçam uma estética da marginalidade, condizente com seu protagonista.
O documentário brilha a cada vez que o protagonista assume o controle. O jovem inicia uma conversa amigável, e no meio das frases, algumas delas se estendem, começam a rimar, dando origem a um rap freestyle, longuíssimo, de conceitos elaborados e vocabulário rico, empregando metáforas e associações de ideia muito potentes. É surpreendente descobrir, ao final de cada tirada, que o texto não estava pronto e decorado. Alan representa uma manifestação cultural inata, nada polida ou trabalhada. Seu talento era bruto e áspero, como o próprio rapaz.
Por isso, os irmãos Lisboa elaboram um bom trabalho de representação. Eles evitam minimizar os crimes cometidos por Alan, mas também não o julgam moralmente pelos erros de percurso. Existe uma sofisticação na imagem delicada, embora explícita, de drogas e armas. O melhor aspecto do filme provém da excelente montagem de Marcos Lé e Igor Souto. Eles organizam a estrutura, intercalando cenas de impacto com outras, introspectivas e contemplativas. Longos blacks silenciosos entre cenas permitem a reflexão pós-cenas de impacto.
Enquanto isso, os criadores abraçam uma estética da marginalidade, condizente com seu protagonista. Teria sido incompatível filmar Alan do Rap num palco bem iluminado, em imagem 4K, sob a luz recortada dos refletores. Pelo contrário, a narrativa é composta por captações caseiras e improvisadas, numa textura digital de baixa qualidade, junto a registros sonoros próximos do inaudível. Abraça-se a linguagem “suja”, incômoda, avessa aos padrões do bom gosto. Registros dessa natureza incomodariam em outros filmes contemporâneos, porém neste caso, justificam-se sem dificuldade.
Os autores produzem um belo filme de amizades e afetos, sobretudo em meio carcerário, com destaque para as populações de extrema vulnerabilidade social. Alan é devidamente retratado enquanto sujeito repleto de capacidades e desejos, podados por um sistema arcaico. Lisboa se inclui discretamente na imagem, revelando na montagem os abraços e afagos entre os amigos. “A sua voz é uma das duas únicas que eu escuto”, alega o detento, abandonado por muitos amigos durante a reclusão. O filme também consiste num desejo de resiliência, como se a finalização do documentário representasse uma forma de não abandonar Alan jamais, em oposição ao que a sociedade lhe fez. O cinema se faz documento, registro histórico, prova de existência.
Isso justifica o longo percurso de treze anos, entre 1999 e 2012, quando o rapper foi acompanhado pelos amigos. O próprio rapaz enumera os inúmeros percalços que os cineastas passaram junto dele, o que reforça a vocação de um filme com Alan, mais do que um filme sobre Alan. Estas experiências foram vividas ao vivo, lado a lado, ao invés de retratadas a posteriori, por terceiros. Existe intimidade e respeito ímpar pela trajetória do artista. Ele sai da posição de objeto de estudo para se converter em sujeito da trama.
Talvez o único elemento que provoque certo estranhamento na abordagem diga respeito à dependência excessiva da validação de terceiros para justificar o talento do personagem. A direção recorre a Mano Brown e os colegas do Racionais, além de Alpha Blondy e outros artistas de pouca relação com Alan do Rap, para lamentar sua prisão e lembrar que ele continha, de fato, uma riqueza jamais concretizada no mercado musical.
As falas de Mano Brown são excepcionais, de uma complexidade ímpar, porém roubam a narrativa para si e chamam a atenção para a estratégia narrativa de defesa do cantor. Ora, os registros entre amigos eram mais do que suficientes para que o espectador percebesse a destreza do jovem com as rimas, e percebesse seu dom. A intromissão de rappers, sobretudo aqueles desconectados do percurso de Alan, soam como uma baixa confiança no próprio dispositivo cinematográfico — até porque estas falas se restringem a ponderar e lamentar a situação de cárcere.
A conclusão também ocorre numa chave convencional demais, com ajuda de letreiros explicativos evocando os últimos acontecimentos na trajetória do artista. Esta domesticação da linguagem soa contraproducente para uma obra que vinha pregando, cena após cena, a ruptura de convenções. Mesmo assim, o longa-metragem implica numa experiência tão forte, em termos políticos, quanto carinhosa a respeito de um homem que se vê, finalmente, reconhecido por tudo aquilo que construiu.