Alemão 2 (2022) pare de uma tradição brasileira no cinema de ação de enxergar as favelas como um empolgante palco de tiros, perseguições e disputas de gangues. O retrato destas comunidades é tolerado pelo público de classe média, que costuma pagar pelo alto preço do ingresso do circuito exibidor, contanto que a representação seja externa, ou seja, que estes grupos sejam observados de fora, por quem não faz parte deles.
Não se trata de uma questão ligada necessariamente à origem social dos cineastas e demais criadores (embora isso também contribua bastante), mas dos protagonistas: acata-se o retrato das favelas pelo olhar do policial que busca pacificá-la, do político que pretende modificá-la, do morador da Zonal Sul que visita um baile no morro, compra drogas ou namora uma bela moradora. A favela se torna um terreno onde seria natural intervir, um local feito para ser invadido. Um local sem leis.
A sequência dirigida por José Eduardo Belmonte deixa esta estrutura clara ao tentar equilibrar o ponto de vista de policiais honestos e gentis, durante uma ação “humanizada” orquestrada por uma delegada, com aquele dos traficantes e de uma moradora amedrontada pelos tiroteios. Ora, conforme a ação se acirra, o roteiro se esquece de Mariana (Mariana Nunes), e deixa o destino de Soldado (Digão Ribeiro) em segundo plano. Afinal, esta não é a história deles, e sim dos policiais salvadores, presentes da primeira à última cena. O público é convidado a ficar do lado destes últimos.
Ao invés de eleger um sujeito truculento como o capitão Nascimento ao posto de protagonista, o longa-metragem busca um olhar diversificado, composto por um herói obstinado e bem-intencionado (Vladimir Brichta), uma novata que acredita nos direitos humanos (Leandra Leal) e um policial de ideologia bolsonarista (Gabriel Leone). “Há todos os tipos de policiais, bons e ruins, violentos ou não”, sugere o discurso. No entanto, o protagonista será aquele que, desde a sequência de abertura, sacrifica a própria vida em busca do bem — quando uma ação é cancelada pelos superiores, ele infringe as ordens para tentar impedir o tráfico a todo custo.
A noção de uma esquerda utópica e simplificada se encontra igualmente na figura da delegada Amanda (Aline Borges). Por um lado, a obra se alegra de colocar uma mulher em posição de comando, acreditando numa intervenção sem mortes no morro. Por outro lado, chegada a hora do conflito, ela é a primeira a perder o controle emocional, chorando e borrando a maquiagem diante de um sujeito facilmente identificável como vilão da trama. As mulheres seguem tendo um papel materno, protetor e conciliador (vide Freitas, Mariana, a “tia” de Zezé Motta, a esposa grávida em casa e a outra, apenas cuidando do filho e chorando) enquanto os homens são propensos à violência, manipulação e corrupção.
Portanto, o discurso progressista se perde numa contradição conceitual. Alemão 2 se abre com trechos documentais sobre Pezão, Cabral, Temer e cobranças de propina no Rio de Janeiro, e se encerrará com a eleição de Jair Bolsonaro, cercado por fãs fazendo arminha com a mão. Existe uma vontade explícita de se colar ao real, comentando este momento específico do Brasil. A mensagem seria de preocupação com a escalada fascista e o aparelhamento punitivista do Estado pela extrema-direita, resultado em casos como o de Marielle Franco, mencionada nas imagens.
A mensagem seria de preocupação com a escalada fascista [no Brasil]. […] Em contrapartida, a direção se diverte demais com a violência para tomar qualquer distanciamento crítico.
Em contrapartida, a direção se diverte demais com a violência para tomar qualquer distanciamento crítico em relação à mesma. Há inúmeras formas de representar agressões, mortes e cenas de tortura: literalmente à distância, de maneira metafórica; fora de quadro; sugerida pela montagem; com luzes, cores e tons áridos, desagradáveis, perturbadores; ou totalmente neutros, caso se critique a normalização dos atos em seguida. Ora, Belmonte segue a cartilha problemática de Carcereiros: O Filme (2019), no caso, o espetáculo imersivo da morte.
As perseguições e tiros adotam uma câmera tremida, na mão, chacoalhando-se para todos os lados enquanto o som contribui à perda de referências (gritos, tiros e ruídos se sobrepõem) e a montagem picota ao máximo as cenas. Enxerga-se pouco das agressões de fato, mas sugere-se um teor divertido, empolgante, de entretenimento a partir destas sequências. Não é por acaso que a cena de maior cuidado de luz e cores, com um show pirotécnico, venha da tortura brutal contra um rapaz negro, com direito a contraluz e várias mudanças de cor na baba do sujeito espancado e sufocado. Há prazer em vê-los sofrer.
A intervenção se transforma num videogame de ação, culminando na imagem do videogame real, mencionado logo após um tiroteio em problemática sugestão de uma cultura da violência fomentada pelos games. Ora, durante o suspense, ou seja, antes da ação propriamente dita, a direção se diverte com drones e plano-sequência, sobretudo na longa cena inicial, empregando um câmera-joystick, ou câmera-sniper. Enxergadas pelo olhar subjetivo do herói externo à comunidade, os moradores se transformam em alvos.
Em termos de tom, o resultado funciona: há cenas de perseguição aceleradas, poucos tempos mortos, explicações didáticas para garantir que todos compreendem o posicionamento e função de cada personagem. “Não é porque é a sua primeira missão que você não pode dar a sua opinião”, explica o diálogo generoso, encontrando uma forma didática de afirmar o status de iniciante de Freitas. Alemão 2 fornece um cinema de ação menos propenso às acusações de fascismo que afetaram Tropa de Elite, espécie de filme premonitório do Brasil atual, que tomava a temperatura de um caldeirão político em início de fervura.
Somem os bailes, a nudez feminina explorada pelas câmeras, o consumo de drogas, o julgamento moral (positivo ou negativo) da religião. Desaparecem igualmente as peles negras besuntadas de óleo para brilharem ao sol, a exemplo de Cidade de Deus (2002). O filme está longe de ser desavisado, ou ingênuo em relação ao território cinematográfico e político em que se insere. Ele se mostra mais propenso a nuances, ao discurso conciliador típico da democracia liberal norte-americana: “Há sujeitos bons dos dois lados”, diria Trump, logo após um protesto supremacista em seu país.
Embora a representação social tenha melhorado no cinema de ação brasileiro, resta um longo caminho a percorrer. Primeiro, em termos de posicionamento político: há alternativas para a mera constatação do caos em que nos encontramos? Sabemos quem devemos repudir, mas o que poderia substituir este comando fracassado? Segundo, na estética da violência e na ideia de que imersão depende do entretenimento a partir da morte/tortura alheia. Terceiro, no aprofundamento de questões de gênero (mulheres propensas a explosões de choro, homens propensos a explosões de raiva). Quarto, na construção ainda romantizada do policial tão puro que arrisca a própria vida em nome da paz. Estamos num caminho positivo, porém ainda distante de construção responsável da sociopolítica brasileira em formato comercial.