“Isso aí faz filme?”. Em 2002, o diretor Marcos Pimentel pegou uma câmera e filmou duas crianças curiosas, Júlia e Cristian, que brincavam na Barragem Santa Lúcia, região pobre de Belo Horizonte. Decidiu, excepcionalmente, convidar o garoto de um bairro privilegiado logo em frente, para se divertir com os meninos da comunidade. O pai da criança rica deixou o filho ser filmado, porque isso seria “bom para o currículo dele”. Os três passaram o fim de semana empinando pipa, jogando bola. Tornaram-se próximos. Depois, não se falaram mais.
Em 2022, ainda no período da pandemia de Covid-19, o cineasta decide reencontrar os três meninos, hoje próximos dos 30 anos de idade. O que teriam se tornado? De que maneira se lembram daquele fim de semana juntos? Amanhã nasce da interlocução entre as diferenças: dois garotos negros e pobres junto a um menino branco e rico; a véspera de um crescimento da classe média com o início do governo Lula, e o caos institucional e político das práticas polarizadas do governo Bolsonaro. Seria tentador dizer que se trata de “dois países diferentes”, porém ainda mais correta, e desafiadora, é a compreensão de que, em vinte anos, estas duas compreensões de mundo representam o mesmo Brasil.
Júlia se torna a primeira protagonista. Mãe de duas crianças, trabalha como cabeleireira. Vive na mesma região, com alguns problemas financeiros. Lembra-se da casa, demolida apressadamente pela administração local, para ceder espaço aos apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida — onde precisaram pagar, pela primeira vez, as despesas com água e eletricidade, o que tornou a família ainda mais pobre. Guarda um sentimento amargo em relação aos governos petistas, apesar de sentir que todos os políticos seriam corruptos, e que a política não lhe interessa de maneira profunda.
Amanhã se constrói no espaço entre o resultado desejado e o resultado possível. As ausências se transformam em personagens, tão importantes quanto aqueles materializados ao espectador.
O reencontro com o diretor produz instantes de afeto genuíno. Foram amigos, de modo que as conversas se traduzem num bate-papo descontraído. O diretor se torna narrador, explicando ao público suas intenções, o processo de filmagem, a demora entre o período inicial de gravações e aquele seguinte, duas décadas mais tarde. Júlia, por sua vez, se converte em personagem-espectadora, assistindo às imagens de si mesma quando criança. O interesse do autor se encontra nas expressões dela: o enquadramento se fecha no rosto, de modo a captar cada risada ou comoção.
Felizmente, o procedimento supera a mera nostalgia daqueles “bons tempos que não voltam mais”. A direção privilegia transformações estruturais e de percepção de mundo. É a jovem mulher quem nos sugere que o irmão, Cristian, se encontra preso após inúmeras condenações. Fugiu de casa, dos abrigos, morou na rua, roubou, consumiu drogas. Essas citações chegam ao espectador sem qualquer julgamento moral, nem da parte da irmã, nem de Pimental. “Ele amadureceu muito com os tombos da vida”, garante a personagem, otimista. Ela será responsável por outras pérolas de poesia singela, dispersas nas sequências seguintes.
Amanhã encanta pela disposição, tão humilde quanto responsável, em escutar o outro. O cineasta promove encontros, mas nunca aparenta condicionar as falas dos familiares. Ouve atentivamente as justificativas da mãe para o que houve com Cristian, e depois escuta o próprio rapaz, uma vez liberado da prisão. Jamais rebate, provoca, instiga para produzir um conteúdo desejado. Aqui, é a câmera que se adequa ao mundo, não o contrário. Sincero, o diretor revela suas dificuldades de filmar, por falta de dinheiro, ou pelo sumiço de um e outro. Explica que, na primeira vez, entrou na comunidade apenas com profissionais vindos de fora. Na segunda vez, metade da equipe era composta por moradores da comunidade.
Talvez Pimentel se justifique até demais, à primeira vista. Ele reafirma as inúmeras tentativas de reencontrar Zé Thomás, o garoto rico dos prédios em frente, que preferiu não aparecer no longa-metragem vinte anos mais tarde. Os motivos, segundo uma carta lacônica, teriam sido o “Brasil polarizado”, dando a entender que a postura direitista do jovem, hoje crescido, seria contrária ao posicionamento claramente progressista da direção. O diretor confessa o medo de o filme não se concluir; revela as intenções fracassadas, cita um lado frágil e instável de Júlia, que não se transmite em imagens.
Aos poucos, percebe-se que o processo de filmagem se torna tão importante ao criador quanto o resultado. Amanhã se constrói no espaço entre o resultado desejado e o resultado possível. As ausências se transformam em personagens, tão importantes quanto aqueles materializados ao espectador: a falta de Zé Thomás possivelmente nos diz mais do que seu retorno ao filme. Os sumiços de Júlia e Cristian — ela, por depressão, ele, pela experiência com drogas, por novas condenações e penas de prisão — adquirem significados potentes.
A montagem compreende de maneira ímpar o peso destes vazios. Por isso, oferece tempo para a contemplação e o silêncio após cada fala forte dos protagonistas. Desta maneira, evita o aspecto sensacionalista, a imagem-choque e o tempo da urgência. O documentário se prova melancólico, ainda que profundamente questionador. Ela representa os dilemas intrínsecos ao Brasil da centro-esquerda contra o Brasil da extrema-direita, sem introduzir nenhuma imagem sequer de Lula e Bolsonaro, de gritos nas ruas ou pronunciamentos na televisão. A política afeta a vida dos indivíduos, entra em suas casas. “Se eu tivesse mais ajuda da prefeitura (para olhar o Cristian), o caminho dele poderia ter sido diferente”, argumenta a mãe. O argumento se justifica.
Assim, o ritmo se orquestra em modo agridoce, afirmando e sugerindo, equilibrando as recordações tristes e as anedotas alegres; as lembranças agressivas com outras singelas e cotidianas. Para a memória da casa destruída de um dia para o outro, lembra-se do prazer das crianças em levar pequenos choques ao encostarem na parede, devido à fiação mal instalada. Após o retorno de mais um desaparecimento, Júlia pede para ser filmada no McDonald’s, comendo um hambúrguer. No parque de diversões, declara ter vivido o melhor dia de sua vida, e compara os brinquedos com a própria vida, por gerarem medo, grito, descontrole.
Há uma beleza singela e potente em cada imagem, captada com segurança, porém sem vaidades por Pimentel. Cenas preciosas e comoventes surgem da metáfora da pipa nos céus, descontrolada nas tentativas de irmã, irmão e mãe, assim como na conversa de Júlia e Cristian sobre política, imaginando os rumos que o menino burguês teria adotado. Seria um empresário? Estudante universitário? Estaria viajando o mundo, falando línguas exóticas? O Brasil de fato se confronta com o país sonhado, ambos representados por dois bairros frente a frente, provocando-se, sem sair do lugar. Vinte anos depois, o muro separando as classes desfavorecidas das classes privilegiadas continua intacto.
Ocasionalmente, Pimentel oferece suas reflexões próprias, de ordem política, em voz off. Neste momento, reconhece ser um personagem tão importante quanto aqueles filmados, ainda que permaneça no espaço fora de quadro. As vontades e frustrações, cinematográficas e sociais, também pertencem a ele. No entanto, sabe quando deixar as imagens se expressarem por si mesmas, e reconhece o valor dos silêncios de terceiros, capazes de representar tudo aquilo que dispensa comentários via narração. A conclusão deixa um nó preso na garganta, espécie de choro sem possibilidade de escape — o filme passa longe do sentimentalismo. Tanta delicadeza, tanto ódio, tanta tristeza e tanta injustiça são condensados, com a aparência de modéstia, neste pequeno grande filme.