O principal interesse deste documentário reside em sua própria existência. Lançado nos cinemas em 2023, ele foi realizado entre os anos de 1918 e 1920 por Silvino Santos, “cineasta da selva”, em sua primeira incursão audiovisual pela região amazônica. No entanto, o material em película era considerado perdido, até ser redescoberto e restaurado. Chega aos olhos dos espectadores 105 anos após sua filmagem, em momento distinto de compreensão do Brasil e do cinema.
Por isso, Amazonas, o Maior Rio do Mundo passa a ser interpretado por sua excepcionalidade, além de sintoma de uma época. Seduz menos pela perspectiva acerca do país no início do século XX do que pela capacidade do acervo cinematográfico em desaparecer e ressurgir. O aspecto fantasmático inerente a toda captação em imagens (afinal, o elemento apreendido diz respeito a algo que se produziu em frente à câmera em algum instante do passado) adquire outro patamar através de um filme encontrado tal qual um artefato arqueológico.
Tal reflexão nos leva ao debate acerca da preservação da arte e da cultura. Antes, perdiam-se os filmes pela dificuldade de conservar o nitrato, pelo descaso das autoridades, pelo caráter inflamável da película. Agora, somem as produções devido à volatilidade e ausência de materialidade das mídias digitais. Plataformas de streaming travam, encerram as atividades, retiram títulos do catálogo. Ontem e hoje, o cinema revela, mas também oculta e é ocultado.
Cabe, aos espectadores e críticos de hoje, emprestar a compreensão de mundo de 2023. Logo, nota-se o olhar mercadológico ao Rio Amazonas e seus arredores.
Neste caso, Santos destina seu olhar etnográfico à Amazônia, que se encontra, em nossos tempos, consideravelmente reduzida, destruída, atacada por motivações econômicas e por governos omissos. É impossível assistir ao material pela perspectiva da época em que foi criado. Cabe, aos espectadores e críticos de hoje, emprestar à imagem a compreensão de mundo de 2023, ainda que não condigam com a intenção inicial de seu criador. Devido às imprevisibilidades do circuito exibidor, esta obra chega aos cinemas na mesma época dos blockbusters da Marvel, dos filmes independentes de grandes festivais, dos documentários (auto)biográficos em primeira pessoa.
Logo, nota-se o olhar mercadológico ao Rio Amazonas e seus arredores. Ao invés de destacar a beleza da região e a importância do patrimônio, como talvez fariam as produções contemporâneas, o média-metragem destaca o potencial lucrativo desta região brasileira. Ressalta o valor da borracha, da madeira, da pele e carne dos animais, dos peixes encontrados nas águas. Pode-se ganhar muito dinheiro aqui, sugere cada uma das cenas. Deste modo, assemelha-se a uma peça promocional ao capital internacional — o equivalente de “o agro é pop” de 105 anos atrás.
Em consequência, explica-se o Amazonas ao olhar estrangeiro. O filme não visa exatamente o público brasileiro, ou pelo menos, não o cidadão desta parte do país. Neste sentido, é relevante que o material tenha sido restaurado pela Cinemateca de Praga, que lhe emprestou letreiros em língua tcheca. O diretor destaca a flora e a fauna a quem não as conheça, abraçando o exotismo digno da perspectiva alheia àquela realidade. Prioriza tudo aquilo que soa diferente, estranho, curioso. Olhem as casas flutuantes! Veja como os indígenas decoram seus corpos! Descubra o tamanho dos peixes-bois que vivem no rio! Conheça as imensas vitórias-régias!
O cinema se faz prova de verdade e de existência, mas também vitrine ao mundo. Hoje, esta perspectiva transborda de racismo ao descrever indígenas enquanto “tribos selvagens”, ao observar pessoas sem nenhum interesse por sua subjetividade. Conforme se distancia das aldeias, os letreiros apontam: “Aqui, a terra se torna mais civilizada”. Filmam-se os espaços enquanto paisagens distantes, passíveis de apreensão (venha e veja por si próprio!), enquanto os seres humanos se transformam em massas indistintas de autóctones. Pessoas são como árvores ou onças-pintadas: meras peças de mobília neste cômodo tão engraçado e diferente do nosso.
Isso porque Santos assume a perspectiva de quem não pertence àquele meio, e filma enquanto estrangeiro surpreso, deslumbrado, ao invés de acostumado ao local e próximo aos habitantes. “Mais uma etapa da nossa jornada”, avisam os letreiros da obra muda. “Nossa jornada se encerra aqui”, alerta rumo à conclusão. Fica clara a impressão de viagem à Amazônia, pela perspectiva turística, com tudo de positivo e negativo que esta postura possa significar.
Nos nossos dias, chama a atenção a raridade de presenciar um filme mudo (sem trilha sonora acrescentada) no circuito comercial. Impressiona o agenciamento de imagens que não estejam focadas no rosto humano, e nem necessariamente no corpo humano enquanto elemento organizador do quadro. A montagem intercala sequências de natureza em ordem próxima da aleatoriedade, em oposição aos conceitos posteriores de narrativa ou linearidade.
As cenas de animais, rios e árvores poderiam ser organizadas em qualquer outra estrutura, sem prejuízo particular ao resultado. Interessam em si próprias, pela dificuldade da captação, mais do que pela riqueza de discurso obtido através da aproximação entre elas. Amazonas, o Maior Rio do Mundo se converte, aos olhos contemporâneos, numa obra retórica. Assistimos à obra perdida de mais de cem anos atrás, ao invés de um documentário de Silvino Santos a respeito do Rio Amazonas. A restauração se faz arqueologia, e o cinema dos nossos tempos encontra a função museológica da imagem.
André Bazin discutia, em seus escritos, a preservação cinematográfica do real em âmbar, para a descoberta de futuras gerações. De maneira consciente ou não, esta forma de arte portaria valor em sua própria iniciativa, para além dos elementos representados. Alguns cineastas e críticos de cinema assumem a intenção de deixar às sociedades futuras uma prova de nossa percepção de mundo no tempo em que nos encontramos. Pois bem, as interpretações mudaram, inevitavelmente. Assistimos a este documentário com o intuito de ver algo que não existe mais.
Há um aspecto amargo ao perceber que a natureza se degradou, os povos indígenas foram massacrados, junto a um curioso alívio em notar que descobrimos formas mais responsáveis, menos fetichistas e exploradoras, de travar contato com culturas diferentes daquela dos homens brancos. Ganhamos em reflexão sobre a natureza (humana e geográfica), perdemos na existência de uma natureza a partir da qual refletir. Com Amazonas, o Maior Rio do Mundo, desapareceram a película, a floresta, a maneira de ver o Brasil e a realidade. À nossa geração, resta um filme de fantasmas.