Aqui (2024)

Jogo da vida

título original (ano)
Here (2024)
país
EUA
gênero
Drama
duração
104 minutos
direção
Robert Zemeckis
elenco
Tom Hanks, Robin Wright, Kelly Reilly, Michelle Dockery, Paul Bettany
visto em
Cinemas

Compre uma casa. Você tem uma esposa. Você tem um filho. Você tem outro filho. Você perdeu o emprego. Sua mãe idosa morreu. Seu pai idoso morreu. Você conseguiu outro emprego. Venda a casa. Compre outra casa. Seu filho entrou na faculdade; pague o valor da mensalidade. Seu neto nasceu; pague o enxoval. Tem uma goteira na casa; pague o encanador. Você comprou uma TV. Você descobriu uma doença; pague o tratamento. Venda o carro.

A estrutura de Aqui lembra bastante o Jogo da Vida, onde um lance de dados determinava, ao acaso, os próximos passos da vida dos participantes. As reviravoltas chegavam de maneira imprevista, aleatória, exatamente como propõe a montagem deste longa-metragem. Para o diretor Robert Zemeckis, o verdadeiro protagonista é um espaço específico, por onde passam, em diferentes séculos, dinossauros, povos indígenas, famílias da década de 1950, de 1970, e assim por diante. De que formas uma localidade se transforma, e que papel ela vem a desempenhar para seus distintos habitantes?

A premissa possui forte potencial. Raros filmes de Hollywood elegem um terreno enquanto protagonista, ousando atravessar uma faixa temporal que vai dos dinossauros ao século XXI. Além disso, o protagonismo em mosaico é promissor: de que maneira as diferentes famílias e grupos representados se comunicam, apesar de não se conhecerem? O que têm a dizer a respeito da forma como percebemos a evolução (ou involução) da vida social? Melhoramos enquanto indivíduos, cidadãos?

No entanto, nenhum destes aspectos existenciais, por assim dizer, atravessa os interesses do cineasta, a partir da graphic novel de Richard McGuire. Os criadores pensam apenas nos ciclos da vida, nos inúmeros nascimentos e mortes, casamentos e doenças, notícias boas (filhos entram na faculdade) e notícias ruins (os pais pensam em se separar). Buscam um caráter universal, digno de identificação para qualquer espectador, ainda que, sem surpresa, privilegie-se a família branca de classe-média, enquanto os personagens indígenas ou negros surgem rapidamente, enquanto meros tokens da diversidade.

O projeto fracassa em praticamente todas as dimensões que buscava explorar cinematograficamente. Acaba utilizando a tecnologia contra a trama, de modo apressado e nada orgânico.

Aí começam os inúmeros problemas do filme. Para um projeto que visa brincar com os domínios do tempo, espaço e do ponto de vista (um ângulo único, durante toda a experiência), o resultado sofre com escolhas questionáveis justamente de tempo, espaço e ponto de vista. Primeiro, o tempo. Nesta narrativa, as ações perdem qualquer sentido de causa e consequência. Somos informados, de maneira descritiva e pontual, que transformações ocorreram (gestações, casamentos, mortes). Entretanto, jamais acompanhamos o antes e o depois, as causas e consequências de cada fato. Eles simplesmente ocorrem, assim como no Jogo da Vida. Num corte da montagem, foram esquecidos devido à chegada da reviravolta seguinte.

Isso implica em não tirar nenhuma lição, nem efetuar qualquer reflexão a respeito destes saltos temporais e não-lineares (a montagem vai e volta nos séculos, a esmo). Nada é deixado de uma geração à seguinte, nenhum elemento é ressignificado pelas demais. Um colar indígena é encontrado, e esquecido no corte seguinte da montagem. Ninguém tira qualquer conclusão a partir do objeto, reduzido a uma curiosidade momentânea. Caso algum grupo tenha impactado os demais, prejudicando-os (caso do genocídio de povos originários) ou ajudando-os (caso dos movimentos feministas), caberá ao espectador determinar. 

Segundo, o espaço. O pressuposto do local único, e do ângulo pré-determinado, fazem com que o espectador imagine o que ocorre ao redor. Enquanto olhamos, durante a maior parte da projeção, para a sala de estar, o que estaria acontecendo na cozinha? Nos cômodos do andar de cima? Na rua logo em frente, vislumbrada através da janela? O cinema de terror se deliciaria em sugerir acontecimentos via som, ou em diferentes profundidades do mesmo enquadramento (caso de Ti West e David Robert Mitchell). Grandes diretores insinuariam conflitos no rico espaço fora de quadro (como Michael Haneke). Em outras palavras, eles estimulariam a nossa imaginação.

Ora, Zemeckis nunca explora o espaço-ao-lado-do-espaço-central. De maneira imediata e superficial, tudo o que interessa para ele ocorre na sala de estar. Pessoas enfartam e morrem sobre o carpete; sofrem derrames ao lado da árvore de Natal; fazem sexo no sofá. Arrastam a mesa de refeição para dentro do enquadramento. Nada ocorre na rua, logo em frente. Os quartos são desprovidos de vida, assim como a cozinha, espaço que possuiria ricas implicações no convívio de uma família patriarcal. Ora, o avô doente se muda para a sala. O pintor amador transforma a sala em ateliê. Na incapacidade de imaginar o mundo ao redor, o cineasta simplesmente transporta, desajeitadamente, o resto do mundo para seu palco.

Este termo se justifica pela aparência teatral do projeto na integralidade. Embora haja florestas, catástrofes globais e demais transformações, os personagens mal interagem com estes fundos digitais, que poderiam igualmente corresponder a qualquer projeção sobre uma tela verde/branca. Nem mesmo os pontos de entrada e saída de cena, a possibilidade de quebra da quarta parede, ou qualquer brincadeira com a geografia ocorre de fato. Rumo ao final, um espelho permite, enfim, enxergar um novo ângulo do cômodo. Tarde demais: o recurso será esquecido a seguir, e nunca explorado a contento — nada relevante ocorria no canto inédito, e tampouco descobrimos algo novo a respeito de nossos personagens.

Terceiro, a ponto de vista. A câmera nem flagra algo que jamais poderíamos ver (em modo espião, voyeur, etc,), nem enxerga estas pessoas de igual para igual, à altura dos olhos, através de uma lente objetiva corriqueira (que reproduz exatamente a amplitude do olhar humano). Funciona como uma captação despossuída, desinteressada — um equipamento de registro esquecido pelos cantos, porém sem foco, nem seleção do olhar.

Lembramos que o documentarista Frederick Wiseman efetuava, concretamente, algo parecido em seus filmes: ele se sentava durante longas horas no canto das instituições filmadas (escolas, hospitais, repartições públicas), com sua pequena câmera em mãos, até ser esquecido. Então, ganhava a oportunidade de olhar para os detalhes das mãos de um trabalhador aqui, para uma expressão descontente de uma funcionária acolá. Ele passava a perscrutar visualmente o local, notando aquilo que o olhar descompromissado não veria.

Ora, o ângulo único escolhido jamais permite notar alhum aspecto interessante deste espaço — um objeto mais importante, um resquício da família anterior, algo ocorrendo de um lado, mas não de outro. Para o espectador, é estranha a sensação de posicionamento em um olhar onisciente (estamos vendo tudo, o tempo inteiro), mas também de não enxergarmos nada realmente relevante (as conversas são banais, as interações são simples, minimamente funcionais). 

Além disso, é evidente que Zemeckis interessa-se unicamente pela família composta por Richard (Tom Hanks), Margaret (Robin Wright), Al (Paul Bettany) e Rose (Kelly Reilly). Os demais núcleos são reduzidos a passagens mínimas, caricaturais, ao limite do desrespeito. A família indígena, vivendo diretamente sobre o mato, sem qualquer tipo de casa ou choupana, possui uma caracterização quase animalesca. A família negra contemporânea, de classe-média, serve apenas para denunciar a violência policial. Um casal existe somente em função de seu interesse por uma poltrona reclinável, que retorna incontáveis vezes. A família nobre do passado, diante de sua mansão, insiste de novo e de novo para que não se discuta política no jantar. Mas nenhum deles importa. Não deixam qualquer traço na trama quando somem de cena.

Quarto, a tecnologia. O drama se mostra desastroso na utilização de maquiagem e tecnologias digitais. Os recursos de rejuvenescimento de atores de meia-idade ainda está longe de soar minimamente naturalista. A transformação de Tom Hanks e Robin Wright em adolescentes faz com que ambos se convertam em estranhos bonecos, sem poros nem textura na pele, marcados por expressões mecanizadas — algo que prejudica seriamente as atuações. Jamais convencem como garotos, chamando atenção apenas para o abismo que separam estes avatares de AI dos jovens concretos.

Além disso, a temporalidade da maquiagem está completamente perdida. Conforme Richard e Margaret envelhecem, o pai Al preserva os mesmos traços durante muitos anos. De repente, em menos de um ano de narrativa, ele adquire um envelhecimento extremo, quase peródico, e tão grotesco quanto a transformação digital. A pior maquiagem ainda é destinada ao homem indígena, transformado numa criatura monstruosa em sua fase idosa — Zemeckis nem mesmo disfarça o desprezo pelo personagem. Al e Rose envelhecem em ritmos diferentes. Nunca soam verossímeis enquanto pais de Tom Hanks e Robin Wright.

Por fim, o projeto fracassa em praticamente todas as dimensões que buscava explorar cinematograficamente. Acaba utilizando a tecnologia contra a trama, de modo apressado e nada orgânico. O cineasta sempre se perdeu na utilização ostensiva de recursos digitais que se sobrepõem às tramas — vide os personagens de O Expresso Polar e Bem-Vindos a Marwen, além da fraca construção de Pinóquio. Desta vez, a tecnologia empregada para a sobreposições de casas, e para as peles estranhamente rejuvenescidas, serve a esconder uma trama paupérrima enquanto ponto de vista histórico, político e humano. 

Aqui não passa de um compilado de lições de vida, no melhor modo coach motivacional. Ame a sua família. Valorize quem passa a vida com você. Não tenha medo de abraçar as oportunidades. Diga às pessoas queridas o quanto são importantes. Lembre-se dos bons momentos passados juntos. Carpe Diem. Etc. etc. etc. Uma complexidade analítica não muito diferente das mensagens em biscoitos da sorte, devorados pelos protagonistas durante uma noite romântica. 

Aqui (2024)
2
Nota 2/10

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