Compre uma casa. Você tem uma esposa. Você tem um filho. Você tem outro filho. Você perdeu o emprego. Sua mãe idosa morreu. Seu pai idoso morreu. Você conseguiu outro emprego. Venda a casa. Compre outra casa. Seu filho entrou na faculdade; pague o valor da mensalidade. Seu neto nasceu; pague o enxoval. Tem uma goteira na casa; pague o encanador. Você comprou uma TV. Você descobriu uma doença; pague o tratamento. Venda o carro.
A estrutura de Aqui lembra bastante o Jogo da Vida, onde um lance de dados determinava, ao acaso, os próximos passos da vida dos participantes. As reviravoltas chegavam de maneira imprevista, aleatória, exatamente como propõe a montagem deste longa-metragem. Para o diretor Robert Zemeckis, o verdadeiro protagonista é um espaço específico, por onde passam, em diferentes séculos, dinossauros, povos indígenas, famílias da década de 1950, de 1970, e assim por diante. De que formas uma localidade se transforma, e que papel ela vem a desempenhar para seus distintos habitantes?
A premissa possui forte potencial. Raros filmes de Hollywood elegem um terreno enquanto protagonista, ousando atravessar uma faixa temporal que vai dos dinossauros ao século XXI. Além disso, o protagonismo em mosaico é promissor: de que maneira as diferentes famílias e grupos representados se comunicam, apesar de não se conhecerem? O que têm a dizer a respeito da forma como percebemos a evolução (ou involução) da vida social? Melhoramos enquanto indivíduos, cidadãos?
No entanto, nenhum destes aspectos existenciais, por assim dizer, atravessa os interesses do cineasta, a partir da graphic novel de Richard McGuire. Os criadores pensam apenas nos ciclos da vida, nos inúmeros nascimentos e mortes, casamentos e doenças, notícias boas (filhos entram na faculdade) e notícias ruins (os pais pensam em se separar). Buscam um caráter universal, digno de identificação para qualquer espectador, ainda que, sem surpresa, privilegie-se a família branca de classe-média, enquanto os personagens indígenas ou negros surgem rapidamente, enquanto meros tokens da diversidade.
O projeto fracassa em praticamente todas as dimensões que buscava explorar cinematograficamente. Acaba utilizando a tecnologia contra a trama, de modo apressado e nada orgânico.
Aí começam os inúmeros problemas do filme. Para um projeto que visa brincar com os domínios do tempo, espaço e do ponto de vista (um ângulo único, durante toda a experiência), o resultado sofre com escolhas questionáveis justamente de tempo, espaço e ponto de vista. Primeiro, o tempo. Nesta narrativa, as ações perdem qualquer sentido de causa e consequência. Somos informados, de maneira descritiva e pontual, que transformações ocorreram (gestações, casamentos, mortes). Entretanto, jamais acompanhamos o antes e o depois, as causas e consequências de cada fato. Eles simplesmente ocorrem, assim como no Jogo da Vida. Num corte da montagem, foram esquecidos devido à chegada da reviravolta seguinte.
Isso implica em não tirar nenhuma lição, nem efetuar qualquer reflexão a respeito destes saltos temporais e não-lineares (a montagem vai e volta nos séculos, a esmo). Nada é deixado de uma geração à seguinte, nenhum elemento é ressignificado pelas demais. Um colar indígena é encontrado, e esquecido no corte seguinte da montagem. Ninguém tira qualquer conclusão a partir do objeto, reduzido a uma curiosidade momentânea. Caso algum grupo tenha impactado os demais, prejudicando-os (caso do genocídio de povos originários) ou ajudando-os (caso dos movimentos feministas), caberá ao espectador determinar.
Segundo, o espaço. O pressuposto do local único, e do ângulo pré-determinado, fazem com que o espectador imagine o que ocorre ao redor. Enquanto olhamos, durante a maior parte da projeção, para a sala de estar, o que estaria acontecendo na cozinha? Nos cômodos do andar de cima? Na rua logo em frente, vislumbrada através da janela? O cinema de terror se deliciaria em sugerir acontecimentos via som, ou em diferentes profundidades do mesmo enquadramento (caso de Ti West e David Robert Mitchell). Grandes diretores insinuariam conflitos no rico espaço fora de quadro (como Michael Haneke). Em outras palavras, eles estimulariam a nossa imaginação.
Ora, Zemeckis nunca explora o espaço-ao-lado-do-espaço-central. De maneira imediata e superficial, tudo o que interessa para ele ocorre na sala de estar. Pessoas enfartam e morrem sobre o carpete; sofrem derrames ao lado da árvore de Natal; fazem sexo no sofá. Arrastam a mesa de refeição para dentro do enquadramento. Nada ocorre na rua, logo em frente. Os quartos são desprovidos de vida, assim como a cozinha, espaço que possuiria ricas implicações no convívio de uma família patriarcal. Ora, o avô doente se muda para a sala. O pintor amador transforma a sala em ateliê. Na incapacidade de imaginar o mundo ao redor, o cineasta simplesmente transporta, desajeitadamente, o resto do mundo para seu palco.
Este termo se justifica pela aparência teatral do projeto na integralidade. Embora haja florestas, catástrofes globais e demais transformações, os personagens mal interagem com estes fundos digitais, que poderiam igualmente corresponder a qualquer projeção sobre uma tela verde/branca. Nem mesmo os pontos de entrada e saída de cena, a possibilidade de quebra da quarta parede, ou qualquer brincadeira com a geografia ocorre de fato. Rumo ao final, um espelho permite, enfim, enxergar um novo ângulo do cômodo. Tarde demais: o recurso será esquecido a seguir, e nunca explorado a contento — nada relevante ocorria no canto inédito, e tampouco descobrimos algo novo a respeito de nossos personagens.
Terceiro, a ponto de vista. A câmera nem flagra algo que jamais poderíamos ver (em modo espião, voyeur, etc,), nem enxerga estas pessoas de igual para igual, à altura dos olhos, através de uma lente objetiva corriqueira (que reproduz exatamente a amplitude do olhar humano). Funciona como uma captação despossuída, desinteressada — um equipamento de registro esquecido pelos cantos, porém sem foco, nem seleção do olhar.
Lembramos que o documentarista Frederick Wiseman efetuava, concretamente, algo parecido em seus filmes: ele se sentava durante longas horas no canto das instituições filmadas (escolas, hospitais, repartições públicas), com sua pequena câmera em mãos, até ser esquecido. Então, ganhava a oportunidade de olhar para os detalhes das mãos de um trabalhador aqui, para uma expressão descontente de uma funcionária acolá. Ele passava a perscrutar visualmente o local, notando aquilo que o olhar descompromissado não veria.
Ora, o ângulo único escolhido jamais permite notar alhum aspecto interessante deste espaço — um objeto mais importante, um resquício da família anterior, algo ocorrendo de um lado, mas não de outro. Para o espectador, é estranha a sensação de posicionamento em um olhar onisciente (estamos vendo tudo, o tempo inteiro), mas também de não enxergarmos nada realmente relevante (as conversas são banais, as interações são simples, minimamente funcionais).
Além disso, é evidente que Zemeckis interessa-se unicamente pela família composta por Richard (Tom Hanks), Margaret (Robin Wright), Al (Paul Bettany) e Rose (Kelly Reilly). Os demais núcleos são reduzidos a passagens mínimas, caricaturais, ao limite do desrespeito. A família indígena, vivendo diretamente sobre o mato, sem qualquer tipo de casa ou choupana, possui uma caracterização quase animalesca. A família negra contemporânea, de classe-média, serve apenas para denunciar a violência policial. Um casal existe somente em função de seu interesse por uma poltrona reclinável, que retorna incontáveis vezes. A família nobre do passado, diante de sua mansão, insiste de novo e de novo para que não se discuta política no jantar. Mas nenhum deles importa. Não deixam qualquer traço na trama quando somem de cena.
Quarto, a tecnologia. O drama se mostra desastroso na utilização de maquiagem e tecnologias digitais. Os recursos de rejuvenescimento de atores de meia-idade ainda está longe de soar minimamente naturalista. A transformação de Tom Hanks e Robin Wright em adolescentes faz com que ambos se convertam em estranhos bonecos, sem poros nem textura na pele, marcados por expressões mecanizadas — algo que prejudica seriamente as atuações. Jamais convencem como garotos, chamando atenção apenas para o abismo que separam estes avatares de AI dos jovens concretos.
Além disso, a temporalidade da maquiagem está completamente perdida. Conforme Richard e Margaret envelhecem, o pai Al preserva os mesmos traços durante muitos anos. De repente, em menos de um ano de narrativa, ele adquire um envelhecimento extremo, quase peródico, e tão grotesco quanto a transformação digital. A pior maquiagem ainda é destinada ao homem indígena, transformado numa criatura monstruosa em sua fase idosa — Zemeckis nem mesmo disfarça o desprezo pelo personagem. Al e Rose envelhecem em ritmos diferentes. Nunca soam verossímeis enquanto pais de Tom Hanks e Robin Wright.
Por fim, o projeto fracassa em praticamente todas as dimensões que buscava explorar cinematograficamente. Acaba utilizando a tecnologia contra a trama, de modo apressado e nada orgânico. O cineasta sempre se perdeu na utilização ostensiva de recursos digitais que se sobrepõem às tramas — vide os personagens de O Expresso Polar e Bem-Vindos a Marwen, além da fraca construção de Pinóquio. Desta vez, a tecnologia empregada para a sobreposições de casas, e para as peles estranhamente rejuvenescidas, serve a esconder uma trama paupérrima enquanto ponto de vista histórico, político e humano.
Aqui não passa de um compilado de lições de vida, no melhor modo coach motivacional. Ame a sua família. Valorize quem passa a vida com você. Não tenha medo de abraçar as oportunidades. Diga às pessoas queridas o quanto são importantes. Lembre-se dos bons momentos passados juntos. Carpe Diem. Etc. etc. etc. Uma complexidade analítica não muito diferente das mensagens em biscoitos da sorte, devorados pelos protagonistas durante uma noite romântica.