É interessante que o filme comece em ponto máxima de estafa para os personagens. Todos, sem exceção, se provocam, insultam e agridem, sobretudo de maneira gratuita — ou seja, sem visar um objetivo preciso. A pré-adolescente Angelina (Isabella Guido) grita com o irmão mais novo. A mãe reclama com Evita (Camila Botelho), e esta se queixa, por sua vez, dos irmãos menores. A garota mais nova está irritada com Zé Luís, um caminhoneiro, por motivos que conheceremos adiante.
Num pronto-socorro, a atendente é surpreendentemente grosseira com a protagonista, que lhe devolve a agressão. Os demais pacientes, esperando por atendimento, elevam o nível de nervosismo. Evita liga para a colega de trabalho que, indignada, pede que não apareça no emprego chapada novamente. Arame Farpado parte da incivilidade enquanto princípio regulador das relações sociais, distribuindo-se igualmente entre crianças e adultos, entre mulheres e homens. Ninguém está particularmente feliz no início, e o acidente envolvendo uma ciclista soa como o menor dos males que o clima de pré-guerra poderia provocar.
Embora a narrativa se inicie na chave do enfrentamento, as imagens destinadas a representar tamanho atrito não poderiam ser mais agradáveis aos olhos. A direção de fotografia de Renato Groberman Hojda opta por um estilo bastante preciosista, trabalhando com grande nitidez o cenário dos campos em Paraguaçu Paulista, sobretudo ao pôr do sol. Há imenso cuidado para retratar a luz caindo, no fim da tarde, iluminando preciosamente cada personagem.
O curta insinua que nossas violências profundas em relação aos outros, numa sociedade do individualismo e do cansaço, podem ser perdoadas, pois estamos todos na mesma situação.
Nota-se a intenção de fazer algo rebuscado, plasticamente atraente, ao limite do exagero — a fotografia corre o risco de chamar atenção excessiva para si mesma, impressão retomada pela cena final. Em contrapartida, o sangue vermelho-claro saindo de uma ferida no rosto jamais remete a um ferimento real. Neste aspecto, os criadores preferem um elemento fantástico, próximo do cinema de gênero, e distante deste naturalismo bucólico-interiorano que domina a narrativa. O projeto parece sempre buscar o seu tom, tateando de um extremo ao outro, algo que se estende às atuações um tanto desiguais. Felizmente, a ótima composição de Camila Botelho eleva a narrativa nas cenas principais.
O filme do diretor Gustavo de Carvalho se torna muito mais potente na segunda metade, quando todos se desarmam — tanto os membros da equipe quanto os personagens da ficção. Evita e Angelina se livram do pressuposto do embate, e passam a compartilhar momentos de diversão, de ludicidade e de contemplação, algo que faz muito bem ao projeto na totalidade. A trama respira. Ao invés das luzes desenhadíssimas do campo, encontramos um painel kitsch no fundo do pronto-socorro, num avesso completo do naturalismo.
Assim, a recepcionista se torna menos afrontosa; os membros de um culto evangélico fogem à condição de vilões; e a menina ganha sua redenção tragicômica, enquanto devora esfirras. O roteiro percebe, enfim, que aquela situação se presta mais ao absurdo e à fábula do que a um panorama verossímil das relações de classe. Zé Luís avalia que o gesto se tratava de uma brincadeira; e os familiares da vítima dispensam qualquer retaliação (algo até surpreendente, dada a gravidade do ocorrido). Afinal, o filme se cola às irmãs: enquanto ambas estiverem bem, podemos considerar a conclusão amarga como um final feliz. Ninguém se importa tanto com a pobre Ariane.
O curta-metragem atinge um desfecho irônico. Favorece a impressão de que tudo terminou bem (a cabeça recostada no ombro), embora não tenha solucionado seus impasses. Sugere a reparação das meninas junto à figura paterna simbólica, ainda que, para isso, precisem ferir uma figura materna. Insinua, de maneira afetuosa e condescendente, que nossas violências profundas em relação aos outros, numa sociedade do individualismo e do cansaço, podem ser perdoadas, pois estamos todos na mesma situação. O carro arranhou apenas um pouquinho, o pastor não prestará queixa. Tudo se resolveu, e nada se resolveu. Mas seremos, todos, perdoados.