Talvez o espectador demore algum tempo até compreender a estrutura do filme, seus personagens e ferramentas de linguagem. Ele surpreende conforme avança, quando parece contradizer a si próprio, abandonando recursos estabelecidos e enveredando por rumos inesperados. No centro da trama se encontra a atriz e performer Viviane de Cássia Ferreira. A relação entre o diretor João Dumans e sua protagonista produz as faíscas e questionamentos deste “documentário experimental”.
Inicialmente, a mulher faz ioga num jardim. A câmera a acompanha, fielmente, até os movimentos se tornarem mais livres. Aí, em teleobjetiva, admirando-a à distância, a imagem chacoalha à direita e à esquerda, procurando-a sobre a grama, enquadrando partes do corpo que se perdem e se reencontram. A câmera brinca de esconde-esconde com a heroína, o que sugere um cinema lúdico e também participativo, espécie de diretor-personagem. Ora, esta escolha se interrompe a seguir.
Quando Dumans sossega o olhar e os enquadramentos, para apenas escutar o que Viviane teria a dizer, reconhecemos o diretor do precioso Arábia (2017). Revela-se um cinema de abertura ao outro, um dispositivo solidário e cúmplice. Por este ponto de vista, o humanismo decorre da entrega espontânea de seus personagens ao cinema, num gesto de confiança e desprendimento. Estão ausentes as vaidades dos dois lados: a atriz não parece ter qualquer freio para revelar sua frágil saúde mental e aventuras sexuais, enquanto Dumans nunca explora a sinceridade alheia para chamar a atenção a possíveis arroubos estéticos da mise en scène.
Embora os diálogos envolvendo trechos de Nietzsche soem leves até demais, e desconectados da vivência da protagonista, as conversas seguintes, a respeito das crises de ansiedade e do transtorno bipolar, transbordam de potência. Esta personagem-narradora ocupa sequências longuíssimas, sem cortes, nas quais detalha de maneira palpável as suas inseguranças, sua vertente tanto agressiva quanto delicada. Ela se despe a um rapaz que conhece pouco, e a quem pede para, por favor, não intervir: este momento é dela.
Conforme Viviane se desenvolve enquanto personagem, através do mergulho complexo em sua psique e libido, o longa-metragem cresce junto dela. […] No entanto, a montagem soa desequilibrada.
O gesto pode ser considerado autoritário, arrogante, ou apenas humilde: por favor, me deixe terminar o pensamento, preciso falar sobre algo muito doloroso para mim. Conforme Viviane se desenvolve enquanto personagem, através do mergulho complexo em sua psique e libido, o longa-metragem cresce junto dela. Os enquadramentos efetuam uma coreografia impecável, quase invisível, para acompanhar a mulher que se deita e se levanta. A captação de som direto é cristalina — e quando há ruídos, caso das cenas na rua, eles são devidamente incorporados e assumidos pela edição de som.
A direção joga de maneira muito interessante com este fluxo constante de falas e ideias. A câmera se foca de maneira obsessiva no rosto da mulher, mas sugere um universo de interações ricas através do espaço extraquadro. Sempre há vozes que respondem, interferem, provocam, ou pontos distantes para onde Viviane olha. A vida dela jamais se encerra numa bolha egocêntrica, pelo contrário. O filme insiste em enxergar seu objeto de estudo enquanto sintoma de uma sociedade neurótica e deprimida.
A este propósito, a Covid-19 entra em cena de maneira discreta, porém importante. As fotografias em still revelam o mar de pedestres com os rostos cobertos por máscaras. Somos então lembrados de um momento de clausura, de incerteza quanto ao futuro, de necessidade ainda maior de comunhão com o próximo. Neste contexto, as falas se potencializam, e a descrição de Viviane adquire um caráter de identificação imediata com o espectador. Ela cita com frequência “João”, o amigo para quem liga em instantes de crise, e que provavelmente significa o próprio cineasta. As Linhas da Minha Mão busca atenuar a diferença hierárquica entre diretor e ator, entre filmante e filmado.
É uma pena que, após tantos segmentos fortes (a narração sobre o sexo com um desconhecido no trem italiano, por exemplo), o projeto pareça indeciso quanto à melhor maneira de se encerrar. Em última instância, hesita sobre o que realmente teria a dizer a partir desta experiência marcante, tanto de Viviane consigo mesma (em chave confessional, psicanalítica), quanto do diretor com ela (em registro de crônica sociocultural). Que reflexões ele extrairia deste longo encontro, para além da preciosidade de sua existência?
Neste sentido, a montagem soa desequilibrada. O filme atinge seu ápice no terço central, quando personagem e estética se encontram num balé bem desenhado e executado. Em contrapartida, tateia o caminho um pouco a esmo no primeiro terço, e volta a perambular por rumos incertos no terço final. Dumans parece ter batalhado para encontrar, de fato, o coração dos conflitos e desejos desta mulher. Uma vez atingido o objetivo, não sabe como lidar com tamanha recompensa.
Fragilidades à parte, a obra reflete uma preocupação louvável com a escuta, com o trabalho de som. Este audiovisual rejeita o especial, o raro, o extraordinário. Trata-se de uma proposta de transparência e simplicidade, o avesso destas autoimagens de redes sociais, repletas de pessoas lindas, felizes e performantes. O filme mineiro prefere os indivíduos pós-euforia, quando caem as máscaras, os filtros, e conversam com os outros como se ninguém estivesse olhando. Um cinema que pratica a empatia ao se impor o mínimo necessário sobre aquele que deseja conhecer.