Avatar: O Caminho da Água (2022)

O novo filme de ontem

título original (ano)
Avatar: The Way of Water (2022)
país
EUA
gênero
Ação, Aventura, Fantasia, Animação
duração
192 minutos
direção
James Cameron
elenco
Sam Worthington, Zoe Saldana, Stephen Lang, Sigourney Weaver, Kate Winslet, Cliff Curtis, Joel David Moore, CCH Pounder, Edie Falco, Brendan Cowell, Jemaine Clement, Jamie Flatters, Britain Dalton, Trinity Jo-Li Bliss, Jack Champion, Bailey Bass
visto em
Cinemas

É interessante que Avatar tenha concentrado parte significativa de sua repercussão popular em elementos extrafilme. Os comentários sobre O Caminho da Água se voltam menos à produção em si do que ao temperamento de James Cameron; o caráter inusitado de uma franquia cujos filmes 2, 3, 4 e 5 foram filmados simultaneamente; a pertinência de continuar a trama treze anos após o original; o impacto do 3D no marketing (e o peso desta tecnologia na renda, visto que o ingresso custa mais caro); a evolução dos efeitos visuais; a repercussão do primeiro filme na cultura e na cinefilia para além dos robustos números de bilheteria.

Insiste-se que este teria sido um sucesso inócuo, sem real peso na história do cinema. Alguém se lembra de uma frase marcante do filme original, das passagens mais ousadas, da trilha sonora? Quem se recorda o nome do ator principal que, por trás dos efeitos azulados, nunca conquistou uma fama próxima àquela de Leonardo DiCaprio em Titanic? No entanto, treze anos depois, cá estamos, críticos de cinema e cinéfilos, discutindo Avatar novamente. Num ano de números fracos para os projetos de super-herói, e com bilheterias decepcionantes para histórias originais, o retorno a Pandora se converteu no filme-evento que os demais gostariam de ter sido, arrecadando respeitáveis US$ 497 milhões mundiais no primeiro fim de semana.

Pode-se dizer que alguma marca ficou, embora não aquela associada ao sucesso atualmente: a conversão em memes, projetos derivados, séries e objetos comercializáveis. Quantas crianças sonham em ter um boneco das criaturas azuis, em comparação com bonecos da Marvel e mochilas de suas animações favoritas? Pelas mensagens acessíveis acerca do amor pela família e pela natureza, resulta acessível a diversos espectadores. No entanto, jamais se comunicou de maneira profunda com jovens, com crianças, ou com a cultura pop. James Cameron busca navegar por um terreno abrangente, em termos de público-alvo, porém escapando às frases de efeito, à fama do ator superstar, à adaptação de um livro querido. Financeiramente, pelo menos, tem conquistado o objetivo proposto.

No entanto, existe o filme propriamente dito. Ainda que relacionado a todas as conversas de mercado e cultura enumeradas acima, também pode ser interpretado enquanto um lançamento comum de 2022 (ao invés de “o novo filme de Cameron”, “a sequência de um dos maiores sucessos de todos os tempos”, “uma promessa de evolução tecnológica”, etc.). A narrativa segue seu caminho imperturbável, como se o mundo não tivesse se transformado radicalmente desde a década de 2000. Ele se inicia em Pandora, na caça de Quaritch (Stephen Lang) por Jake Sully (Sam Worthington). O prólogo explica suas motivações com a clareza de uma mãe lendo contos às crianças antes de dormirem: a família vivia feliz, até chegarem seres malvados para abalar a paz.

Preserva-se a noção de indivíduo autóctone enquanto criatura simples, de poucas vontades, pequenas ambições, e feliz justamente por não conhecer as criações do homem. Investe-se sem moderação no mito do bom selvagem.

O mundo se divide novamente entre grandes vilões e mocinhos resistentes, entre “criaturas do ar” (esses maravilhosos homens e suas máquinas voadoras, sedentos por dinheiro) e as criaturas da floresta e da água, que priorizam a família, a natureza, o bem-estar coletivo. Oferece-se o bem contra o mal, o sujeito corrupto e sanguinário contra as comunidades pacíficas, ou ainda a modernidade contra a percepção de algo puro, pois ligado às árvores, aos rios, aos bichos. Preserva-se a noção de indivíduo autóctone enquanto criatura simples, de poucas vontades, pequenas ambições, e feliz justamente por não conhecer as criações do homem. Investe-se sem moderação no mito do bom selvagem.

Estes povos procuram representar, portanto, figuras minoritárias, perseguidas e colonizadas. Não por acaso, os Na’vi possuem dreadlocks na cabeça, enquanto os Metkayina têm o corpo coberto de tatuagens diretamente inspirada dos Maori. A sonoridade das falas remete ao linguajar de algumas comunidades africanas, e a produção se esforça em trazer personagens negros e asiáticos para as vozes originais — contanto que o mocinho e o vilão ainda sejam brancos norte-americanos, é claro. Estes tipos bonzinhos, que conversam com criaturas marítimas e compõem música com Tulkuns, são os outros, em relação a nós, sujeitos civilizados, da cidade, que compram ingressos e frequentam salas de cinema.

A fábula possui uma simplicidade impressionante enquanto discurso e visão de mundo. Os personagens ocupam funções narrativas, sendo desprovidos de contradições, dubiedades e outros sinais de uma personalidade complexa. Uma vez determinado que o Coronel Miles busca matar Sully, é apenas isso que ele fará, cena após cena. Sugere-se que a descoberta da paternidade possa atenuar a sanha de vingança, no entanto, esse fator jamais se desenvolve. O filho-problema, um adolescente rebelde, escapa impressionantes cinco vezes das ordens do pai, criando dilemas que os adultos precisarão resolver. A filha sensível, Kiri, passa o tempo inteiro se questionando por que seria diferente dos outros. 

Em outras palavras, ninguém se desenvolve enquanto personagem. Eles atravessam aprendizados morais, como convém às fábulas do bem vencendo o mal (spoiler alert). No entanto, constituem peças num tabuleiro que, a exemplo do xadrez, podem se mover de uma única maneira repetida. Vilões atacam, mocinhos salvam, crianças servem para se perder e esperar por resgate. A presença de um pré-adolescente humano entre os Na’vi gera a ideia de que ele seria o “cachorro” da família, e apesar de manifestar conflitos éticos adiante, o garoto passa a maior parte de sua jornada testemunhando em silêncio, atônito, as maldades cometidas pelos maldosos.

Avatar: O Caminho das Águas chega em 2022 com a aparência incômoda de um filme antigo, desconectado das pautas contemporâneas. A história se leva a sério demais, tanto pela pretensão do discurso (que acredita estar trazendo valiosas lições de vida) quanto pelo desprezo a qualquer forma de humor (jocoso, doce, malicioso, que seja). A diversidade é restrita à relação paternalista com as diferenças (“Veja como sofrem os índios, os africanos, os asiáticos!”), enquanto as mulheres se sustentam na posição de mães hormonais e sensíveis, que se tornam histéricas diante de uma morte, enquanto os homens continuam frios, comedidos, prontos para a ação. Assim que chega à tribo alheia, o menino Lo’ak (Britain Dalton) imediatamente olha para uma garota por quem se apaixona. Na hora do clímax, apenas os rapazes duelam. Já Ronal (Kate Winslet), grávida e de personalidade artística, limita-se a compor música.

Ah, mas existe Edie Falco, no papel de uma general perversa! Há mulheres asiáticas entre os humanos maldosos que caçam Tulkuns! De fato. Esta parcela de produções da Disney concebe a presença de pequenas figuras dissonantes, contanto que no fundo da imagem, sem perturbar a ordem das coisas. Mesmo assim, Falco encarna uma mulher masculinizada e bruta, e as demais personagens diversas nem sequer possuem nomes ou funções narrativas, restando na condição de representantes de seu gênero ou etnia. O outro ainda é visto de fora, com admiração por seu exotismo, por sua língua estranha, suas capacidades peculiares. Este grupo não é empoderado, e sim fetichizado, transformado em espetáculo para os olhos da maioria.

É curioso o cinema que se ampara das mesmas funções da escola, da educação familiar, da religião e do ensino moral enquanto justificativas de sua existência.

A propósito de espetáculo, o filme utiliza o orçamento generoso e a capacidade de direção de Cameron para criar um show tão chamativo quanto comportado. Os seres azuis encontram seres verdes, em paisagens amplas que remetem a ilhas virgens. Eles nadam sob as águas, conectam-se com criaturas fluorescentes, brilham no escuro dentro do corpo de uma criatura imensa. Há uma noção de gigantismo nas proporções, na oferta de encantamento face à natureza fantástica, de cores pastéis. Cita-se uma espécie de líquor extraído dos Tulkuns, que valeria bilhões de reais aos humanos, no entanto, a relação entre Pandora e o mundo lá fora resta estanque, apenas citada por terceiros. Cameron não deseja sair do cenário paradisíaco, nem colocá-lo em perspectiva.

Ele mostra do que realmente é capaz quando enfim chega ao clímax, após duas horas de projeção. Trata-se de uma ambiciosa e longuíssima cena de batalha, envolvendo animais, humanos, Na’vis e Metkayinas. Há três ou quatro subtramas montadas em paralelo, enquanto a trilha sonora oferece as composições mais catárticas de sua orquestra, quando se chora e se comemora em fartas proporções. O caráter zen e new age da produção enfim desemboca em algo que, se não soa propriamente inovador, ao menos comprova as qualidades técnicas e de ritmo de Cameron e equipe para as exigências do blockbuster de ação. É conveniente demais que os quatro filhos se percam sucessivamente, sendo sequestrados, soltos, sequestrados de novo e soltos de novo. Pelo menos, o roteiro sabe disfarçar a artificialidade do procedimento repetido através da carga emocional.

O clímax representa uma recompensa, dentro dos moldes do cinema industrial, pela espera até então, sobrecarregada de frases a respeito da pureza dos sentimentos, o valor das águas e a importância de amar sua família. “Eu vejo você”, insistem os diálogos, crentes de veicularem algo profundo, provocador ou revelador. Enquanto isso, Jake e Tonowari (Cliff Curtis) declamam parábolas a respeito da família e da honra, defendida sobretudo pelas autoridades paternas, enquanto as esposas, menos racionais, querem sair correndo ou partir para a guerra. Homens ainda representam a razão, e as mulheres, a emoção. Caso alguém ainda não saiba, prega-se a necessidade de dedicar a vida às famílias de sangue e aquela de criação (caso de Spider), sem trair os seus. Que fique registrado.

É curioso o cinema que se ampara das mesmas funções da escola, da educação familiar, da religião e do ensino moral enquanto justificativas de sua existência. A arte pode oferecer a sentir, a refletir e questionar, através das formas, da poesia, das ambiguidades e dos subentendidos. Avatar 2, em contrapartida, deixa pouquíssimo ao espectador para pensar por conta própria: somos ensinados quem devemos amar, e quem devemos odiar. Descobrimos qual causa é boa, e qual é ruim. Para um cinema tão preocupado com a imersão (o 3D, os planos subjetivos, os voos e mergulhos), concebe-se um espectador passivo ao extremo, incapaz de associar ideias por conta própria. 

Logo, Avatar: O Caminho da Água consiste numa arte do reconforto, no melhor e pior sentidos do termo. Ele pega o espectador pela mão, tal qual uma criança pequena, a quem traz metáforas fáceis, cores chamativas e ensinamentos virtuosos, esperando que se torne um cidadão melhor ao final. Trata-se de uma catequese menos interessada em levar o espectador a questionar o que vê, do que em pedir que compre, com fé e suspensão da descrença, tudo aquilo que lhe é dito. No quesito imagem da natureza, representação das águas e complexidade psicológica dos protagonistas descobrindo suas vocações, a própria Disney já tinha ido muito mais longe com Moana: Um Mar de Aventuras (2016), por exemplo.

Avatar: O Caminho da Água (2022)
5
Nota 5/10

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