Neste curioso projeto, o diretor Ben Rivers não toma decisões pela metade. Nenhum tipo de sutileza, de subentendido, de nuance parece lhe interessar. A apresentação de seu personagem principal beira a abstração: durante um plano escuríssimo, distingue-se com dificuldade o formato de um carro, além de alguns pontos luminosos que, mais tarde, indicação a carroceria. Desconhecemos o homem idoso sem nome, que demora bastante a ter seu rosto revelado. Antes disso, escutamos sons, ruídos esparsos. Mesmo o gato aparece antes de seu tutor.
Talvez nem seja justo afirmar que o sujeito solitário ocupe a posição de protagonista. Afinal, o verdadeiro foco do cineasta não se encontra no material humano, mas na possibilidade de explorar a película, a luz, as cores, a duração dos planos. Bogancloch (local onde vive o homem, embora seja necessário ler a sinopse para descobrir tal informação) alterna entre cenas em preto e branco contrastadíssimo, e fotografias still de um colorido profundo.
A captação majoritária, em preto e branco, é encoberta por riscos, ruídos, flashes de imagem “queimada”, bordas desiguais. Já as fotos recebem uma intervenção na forma de manchas que borram a quase totalidade das paisagens retratadas. Este é um filme que poderia transmitir seu conteúdo de maneira muito clara e linear, se assim o desejasse. No entanto, o prazer do autor se encontra precisamente em dificultar o percurso, em fazer com que o espectador se perca nos significados e construções, buscando, de maneira ativa, decifrar aquilo que os feixes representam.
É difícil determinar o que Ben Rivers teria a dizer a respeito de seu personagem, de sua solidão, de seu modo de vida. Para alguém que admira tanto as paisagens, surpreende a compulsão pelas intervenções, filtros e ornamentos do real.
Seria uma captação em película antiga e vencida, ou um efeito semelhante, produzido em suporte digital? Por que Ben Rivers apostaria num estilo capaz de chamar tamanha atenção a si próprio? Caso o consideremos enquanto cinema experimental, o que exatamente ele estaria experimentando a partir desta viagem sensorial? O que teria motivado os criadores a acompanharem a rotina do sujeito idoso que descansa de um lado ao outro, em silêncio? As perguntas restam sem resposta — de maneira totalmente voluntária pelo cineasta, sem dúvida.
Em oposição às imagens nebulosas e herméticas, o som se mostra claro até demais. Conforme o gato devora os restos de uma ave depenada, a captação de ruídos parece construída a posteriori para tal cena. Aliás, a obra demonstra tamanho nível de intervenção e controle no meio (vide os planos fixos do galpão, e a ascensão interminável do drone na conclusão) que nem mesmo poderia ser chamada, com certeza, de documentário. Nem mesmo ao nível ontológico, tal definição se sustentaria: afinal, o que este filme documentaria, para além de comprovar que algo existiu, um dia, em frente à câmera (o ça a été de Barthes)?
Bogancloch soa como uma brincadeira de suposição de significados e atribuição de sentidos. As tentativas do público mais atento resultam tão pertinentes quanto enxergar formas de animais em nuvens. Estas metáforas vagas dispensam a certeza da afirmativa, ou a noção de finalidade, posto que o autor evita chaves de leitura que condicionem um caminho mais restrito de interpretação. A maioria do público deve apenas desistir da proposta longuíssima, inerte, de planos intermináveis, e desprovida de ações. A priori, pode-se falar numa sucessão de atividades (tomar banho, cantar, descansar na relva), porém, nenhum conflito.
Na sessão de imprensa, algumas pessoas abandonaram a obra de duração enxuta. Falou-se, nos bastidores, no “filme mais chato da Mostra” — algo que dificilmente incomodaria o criador, que provavelmente visa esta precisa irritação e perturbação dos sentidos. Ele oferece a proposta de experiência do tempo que passa, baseada na contemplação do cotidiano de uma pessoa mantendo contato quase nulo com a sociedade (exceção feita às aulas, aparentemente informais, de astronomia às crianças). Os diálogos são raríssimos, e restritos a poucos minutos de narrativa.
Logo, o filme parece existir em oposição aos pressupostos de um cinema clássico-narrativo. Ele exemplifica a caricatura do que se convencionou chamar de “filme de arte”: um projeto árido, de difícil imersão e comunicação, a respeito de personagens e cenários exóticos, em preto e branco, onde “nada acontece”. É difícil determinar o que Ben Rivers teria a dizer a respeito de seu personagem, de sua solidão, de seu modo de vida. Para alguém que admira tanto as paisagens, surpreende a compulsão pelas intervenções, filtros e ornamentos do real.
Pelo menos, Bogancloch permanece coeso e coerente com seu princípio, sem facilitar a iniciativa nem abrir qualquer concessão ao gosto médio. Acredita-se com rara convicção na eficiência de tal método, evitando explicações, contextualizações, senso de finalidade ou mesmo de narrativa. O projeto não existe para agradar o espectador, nem para informá-lo do que quer que seja. Busca-se uma forma de arte tão intervencionista quanto a pintura, no sentido de partir de um quadro em branco e depois pintar, extravasar o contraste, inserir ranhuras, estender os planos.
Os personagens e cenários convertem-se em modelos, posando para o pintor vaidoso, e ansioso em demonstrar tudo o que sabe fazer com o pincel. No final, nem o senhor idoso, nem a linguagem são os reais protagonistas da iniciativa, mas o próprio diretor, que constitui princípio e finalidade da obra. Ele sabe o que busca, e o alcança. Cada composição ou interferência em pós-produção aprofunda a impressão de uma vaidade autoral. Resta saber se tais pretensões estetizantes estabelecem alguma forma de comunicação com o público, para além da satisfação do criador consigo próprio.