“Meu maior sonho é ser filmado com uma rosa amarela enfiada no cu, e tentando chupar o próprio pau”. Esta é uma das frases retiradas do processo criativo de Boom Shankar, um filme nunca finalizado. Em 1972, o ator Guará Rodrigues, figura célebre do Cinema Marginal, decidiu elaborar o seu primeiro longa-metragem como diretor. Reuniu um pequeno grupo de amigos numa kombi, e viajou de Amsterdã a Goa, na Índia, durante muitos meses. Filmava aquilo que acontecia durante o trajeto, num fluxo criativo constante.
“Ninguém estava entendendo aquela viagem. Não tinha sentido”, explica a atriz principal, Célia Nogueira, em voz off. “Não tinha roteiro”, acrescenta outro testemunho. Isso não significa que o filme-dentro-do-filme fosse irresponsável, ou amador. Guará possuía ampla experiência nos maiores títulos de Júlio Bressane, Neville d’Almeida e Rogério Sganzerla. Além disso, já havia desempenhado funções de assistência de direção. Logo, a opção por uma construção livre, aberta ao improviso, decorria de uma escolha artística, ao invés de uma falta de escolhas.
Um dos aspectos mais interessantes de Boom Shankar: O Filme Perdido do Guará se encontra no resgate de outra forma de pensar o cinema. O diretor e sua equipe gravaram sequências do ator nu, arrastando o cadáver de um cachorro pelo deserto; de um casal no início do ato sexual, enquanto negocia a venda de drogas com um cliente; e de um artista tocando uma composição ao piano enquanto uma mulher se acaricia ao lado, acompanhando a melodia. Trata-se de construções impensáveis para os nossos tempos psicorrígidos e neoconservadores.
O diretor Sérgio Gag promove uma arqueologia da imagem, um diálogo ruidoso entre o cinema independente de hoje e o cinema “porra louca” de antes.
Conforme atestam os letreiros iniciais, o movimento hippie clamava pelo direito de sonhar com uma nova forma de estar no mundo — para além de redistribuição econômica e igualdade de direitos. Os fragmentos encontrados e montados do projeto inconcluído de Guará representam a possibilidade de vislumbrar um cinema totalmente apartado das demandas da indústria, além dos formatos e discursos conhecidos. O cinema mais ousado do século XXI ainda passa longe da inventividade formal e estética proposta naquela época.
O diretor Sérgio Gag promove, portanto, uma arqueologia da imagem, um diálogo necessariamente ruidoso entre o cinema independente de hoje e o cinema “porra louca” de antes, nas palavras de um personagem. Como adequar a linguagem atual ao aspecto disruptivo do material reencontrado décadas depois? De que forma honrar o espírito de devaneio de Guará, sem podar as captações por um caráter expositivo e didático?
O autor demonstra notável preocupação em valorizar os registros e dialogar com eles, ao invés de somente tratá-los como objeto de estudo. Por isso, o documentário adota uma estrutura igualmente sonhadora, ainda que dividida em prólogo e três partes (sem epílogo, no entanto). O prefácio intitulado “Sobre pintos, bucetas e botas” dita o tom da relação descontraída com o corpo, que certamente condizia com Guará e sua equipe, embora jamais contagie o restante da narrativa de 2024. Evoca-se o senso de libertinagem sem recriá-lo.
A película encontrada apresenta diversas ranhuras e manchas esverdeadas (seriam mofo?), mantidas na obra atual. Aqui, as intervenções do tempo se justificam, sendo abraçadas com a mesma generosidade que Guará acolhia os imprevistos do percurso. Ao invés de minimizar a passagem do tempo e sublinhar a atualidade do material de arquivo (a exemplo de tantos longas-metragens que se dedicam ao trabalho de terceiros), Gag prefere sublinhar esta distância, apontando o quanto nos distanciamos daquele ideal. A passagem geracional e a ruptura com certos ideais constituem temas fundamentais da obra contemporânea.
Por isso, os curtos 74 minutos dão conta de referenciar a construção estética alheia, sem copiá-la. Trata-se de uma representação de Boom Shankar, ao invés de sua reconstrução. Os autores sabem muito bem equilibrar os impulsos criativos, entre acolher os registros do outros artistas e criar seus próprios, incorporando falas de Célia Nogueira, Toni Nogueira e Carlos Figueiredo enquanto evitam o formato protocolar dos talking heads. Por exemplo, dispensam-se imagens do rosto dos depoentes. Suas falas se desenvolvem de maneira etérea e fantasmática, conforme trechos de películas riscadas e sons hipnóticos ditam a experiência.
Apesar do diálogo frutífero entre autores, o longa-metragem transparece certas limitações na abordagem. A ausência de um epílogo se faz sentir: o filme se encerra de maneira abrupta, diante da alegria de revelar e assistir às películas originais. Ora, que impacto vieram a ter, culturalmente? Como este registro se perdeu, visto que significava tanto para os criadores? Quais esforços Guará efetuou para finalizar a obra, e por qual motivo estas iniciativas fracassaram? Tivemos outras produções hippies semelhantes? Outros filmes de cineastas conhecidos, realizados em moldes parecidos? Mistério.
As indagações continuam. Como tal obra dialogava com os títulos marginais de Neville d’Almeida, Júlio Bressane, Andrea Tonacci? Os artistas envolvidos no projeto participaram de iniciativas do gênero em seguida? Temos indícios do conteúdo dos trechos perdidos, já que não havia descrição dos mesmos num roteiro? O que os atores Célia Nogueira e Carlos Figueiredo, presentes na apresentação do filme, pensam atualmente daquela abordagem, e como enxergam a concepção de um cinema “marginal”, ou “de guerrilha”, realizado hoje?
Falta ao longa-metragem investigar o impacto desta proposta e sua comunicação com o audiovisual produzido desde então. Boom Shankar: O Filme Perdido do Guará possui uma bela tese (a película do Guará), uma antítese (as construções de Sérgio Gag), porém carece de uma síntese capaz de uni-las e inserir tal reflexão na contemporaneidade. O que o cineasta tem a dizer a respeito da manutenção de filmes, das iniciativas radicais, dos resquícios do movimento hippie?
Carências à parte, o longa-metragem demonstra uma rica imersão, tão respeitosa quanto criativa, no processo artístico de outro criador. No CineOP, onde foi apresentado pela primeira vez, os espectadores e críticos saíram da sala com um sorriso no rosto, impressionados com o conteúdo, e certos de terem testemunhado algo importante.