Caixa Preta (2022)

Cinema em transe

título original (ano)
Caixa Preta (2022)
país
Brasil
linguagem
Experimental
duração
50 minutos
direção
Saskia, Bernardo Oliveira
com
Negro Léo
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

“O transe não é narrativo”. Uma das inúmeras frases potentes deste média-metragem diz respeito à lógica do transe em sua ruptura com padrões de narratividade. Enquanto esta última se preocupa em “contar uma história”, seguir certa linearidade, uma forma comum de construção de personagens e sentidos rumo a um caminho preciso, o transe permitiria o seu avesso. Esta proposta de liberdade favorece a ruptura, o ruído, a provocação de sentidos. 

Em outras palavras, a desconstrução de normas, para dialogar com o espectador na base de um apelo constante à ressignificação dos sentidos à nossa frente. Trata-se de um fascinante jogo onde as regras mudam a cada jogada. Quando acreditamos compreender seu funcionamento interno, ele se transforma outra vez. “O que é isso que estou enxergando?”, podemos nos questionar diversas vezes ao longo dos 50 minutos de Caixa Preta. A resposta não é fácil, nem pretende ser.

A sessão se abre com uma tela escura, acompanhada por cantos de matriz africana. O som está distorcido, e as falas se repetem como num mantra. A este propósito, a lógica do êxtase nunca se afasta do filme para o qual a repetição, em sua violência, se transforma em elemento fundamental de (des)construção. A longa sequência final, de delírio coletivo num culto neopentecostal, apela à reprodução em looping dos giros dos fiéis e das falas da cantora. No aniversário do supermercado Guanabara, a invasão brutal dos consumidores se reproduz de novo e de novo. Mesmo padrões abstratos e distorções eletrônicas em tela retornam.

Caixa Preta abraça aquilo que os festivais de cinema e o manual acadêmico do bom gosto costumam desprezar: o excesso, a saturação, a perturbação, o incômodo.

Assim, paira uma impressão de circularidade, de caminhos paralelos, simultâneos e tangenciais. Os diretores Saskia e Bernardo Oliveira manipulam o tempo e o espaço, além das noções de finalidade e propósito do material de arquivo. Nenhuma fotografia ou vídeo é empregado no contexto original de suas criações. A maioria destes fragmentos jamais visou se tornar arte (o registro do supermercado, a sequência do culto), sendo transformado, deturpado de maneira assumidamente grosseira e explícita. A forma é conteúdo, e o gesto de arrancar as captações de seus referenciais se torna uma mensagem em si. O “desrespeito” criativo com o material constitui uma iniciativa artística fundamental. 

Os criadores deixam muito clara a sua intervenção por meio da manipulação, sobretudo na montagem e na pós-produção. Eles dividem a tela em três; dissociam o som da imagem referente; sobrepõem uma captação a trilhas sonoras distorcidas e às falas de terceiros; oferecem uma caixa preta literal no centro da tela (e outras menores, dentro dela). Num momento específico, a captação de uma imagem se combina com ruídos alheios à cena, além de falas de um terceiro contexto e canção de uma quarta origem.

Logo, Caixa Preta abraça aquilo que os festivais de cinema e o manual acadêmico do bom gosto costumam desprezar: o excesso, a saturação, a perturbação, o incômodo. No entanto, os artistas estimam que, para representar algo tão violento quanto o racismo estrutural, uma estética à altura se faz necessária. Por isso, são introduzidos comerciais incrivelmente preconceituosos (quando um trabalhador negro, com o rosto de sujo de tinta, é colocado na máquina de lavar e, quando sai do aparelho, está branco), junto a falas de cunho discriminatório e à lembrança da selvageria aplicada sobretudo aos mais pobres e aos negros (novamente, o trecho do Guanabara).

Ao invés de apenas desconstruírem, os artistas têm muito a oferecer a partir das estruturas demolidas. Negro Léo, membro do coletivo Ciranda do Gatilho ao lado dos cineastas, oferece uma canção-manifesto em homenagem aos grandes artistas e ativistas negros que resistem à opressão. “A morte é uma ficção. Nós não cansamos de morrer”, afirma. Evoca Grace Passô, reapropria as falas do belo curta-metragem República. Logo, encerra a consequência na chave da convocação. Para além de afrontar, o média-metragem também convida a um posicionamento, organizando as peças através de um desenvolvimento conceitual preciso (estruturado, no final, pela repetição da frase “Eu sou o terceiro milênio”).

Seria fácil descartar a proposta ao considerá-la aleatória, retórica, digna dos museus e espaços de videoarte, ao invés das salas de cinema. No entanto, em sua profusão de estímulos e ideias, o resultado se mostra incrivelmente coerente no uso de som e imagem, na maneira como descaracteriza o arquivo para melhor sublinhar o mecanismo social perverso que ele representa. A tela preta do início volta ao final, e as falas ancestrais da abertura casam com o “chamado às armas” de Negro Léo. Há uma clareza de pensamento determinante por trás deste gesto iconoclasta. A experiência deve permanecer com o espectador muito tempo após a sessão.

Caixa Preta (2022)
10
Nota 10/10

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