Casa Izabel (2022)

Fantasia da morte

título original (ano)
Casal Izabel (2022)
país
Brasil
gênero
Drama, Suspense
duração
84 minutos
direção
Gil Barone
elenco
Jorge Neto, Laura Haddad, Luis Melo, Luiz Carlos Pazello, Andrei Moscheto, Sidy Correa, Zeca Cenovicz, Otavio Linhares, Jeferson Ulbrich, Fábio Silvestre
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Um homem envergonhado chega à “Casa Grande Izabel”, e logo recebe instruções quanto ao funcionamento do local. Descobre que, durante o fim de semana, ele se vestirá de mulher, assim como os demais hóspedes. Adotará um nome feminino, e evitará tanto as conversas sobre o mundo lá fora quanto o contato íntimo com os colegas — este “não é um lugar de promiscuidade”. Pelo contrário, as elegantes damas de meia-idade perambulam pela casa, trocam elogios ou comentários sarcásticos, bebem vinho e champanhe. Ocasionalmente, telefonam para a esposa para afirmar que a pescaria com os colegas vai muito bem, obrigado, apesar da pouca quantidade de peixes.

Partindo da premissa rara, o longa-metragem desperta duas impressões iniciais: 1. O protagonista seria Regina (Andrei Moscheto), o novato da instituição, que permite ao espectador se identificar com o ponto de vista de fora; de quem desconhece as regras da instituição. 2. O dilema estaria ligado ao travestimento, à orientação sexual e à identidade de gênero dos personagens que fogem de suas rotinas entediantes para encarnarem uma persona feminina durante poucos dias, pagando uma quantia considerável em troca do luxo e do sigilo.

Ora, nenhuma destas intuições se confirma a seguir. Regina logo vê sua importância diminuir em meio aos outros personagens. A matrona Izabel (Luís Melo), a controladora Bete (Sidy Correia), a cozinheira da mansão (Laura Haddad) e o filho desta mulher (Jorge Neto) assumem os holofotes alternadamente. A sexualidade, o afeto e os desejos do grupo nunca são explorados. Alguns possuem esposas, algo que francamente não significa muita coisa em termos de suas atrações e seu gozo. O filme tampouco se importa com paixões.

A maior beleza do projeto nasce deste embate entre uma deliciosa ilusão e o amargor do real. Diante de cadáveres e poças de sangue, torna-se impossível sustentar as tardes de champanhe entre mulheres da sociedade.

O foco poderia se encontrar, então, no faz-de-conta de encarnar outra figura, num ambiente seguro onde todos fazem o mesmo. As nobres damas escolhem suas personagens: uma vendedora de imóveis, uma atriz do cinema clássico, uma primeira-dama. No entanto, jamais se portam como tal. Para um filme que cita inúmeras vezes a palavra fantasia (“É preciso manter a fantasia”, “O álcool ajuda a manter a fantasia”, “Escolha outra fantasia”), surpreende a incapacidade destas personagens de mergulharem nas versões criadas por si próprias. As personas femininas bebem, perambulam, caçam. Entretanto, jamais exploram suas ficções, atuando como vendedoras, artistas, etc. Tanto elas quanto o filme demonstram maior interesse em falar sobre a representação do que em vivenciá-la.

A propósito de falas substituindo experiências concretas, o roteiro incomoda pela quantidade de diálogos explicativos e acessórios. Trata-se da síndrome do eu-sei-você-também-sabe: em diversas cenas, personagens compartilham uns aos outros dados e informações de que ambos dispõem, apenas para elucidar contextos ao espectador. Izabel menciona à jovem Leila o trato envolvendo sua herança, apesar de a ajudante já saber disso. A cozinheira mantém um homem em cativeiro, e verbaliza ao sujeito os motivos pelos quais está preso. Ora, ele não sabia disso? A mesma personagem reclama com Sílvia que, no passado, as ocupantes da casa auxiliavam nas tarefas diárias. A interlocutora também possui plena consciência desta informação.

Não por acaso, a melhor sequência de Casa Izabel constitui o exato oposto deste mecanismo didático. Numa breve sequência de rostos, a montagem apresenta a galeria de mulheres que já passaram pelo local. De maneira frontal, capta seus rostos, as maquiagens, perucas, roupas. Revela, desta maneira, os tempos áureos da casa que hoje se encontra em estado decadente. Tudo isso se desenvolve sem um diálogo qualquer, sem a necessidade de explicitar significados. O filme poderia crescer caso apostasse na força visual de articulações como esta, ao invés de depender das falas para avançar a trama. Para uma obra que visa homenagear transgressões (o travestimento e a existência de células comunistas, revolucionárias, pelo resto do país), falta impregnar a estética e a linguagem de equivalente ousadia.

Este ponto de vista de fora, de quem observa os demais sem participar da festa, domina o longa-metragem. A história pende à emancipação de Leila (Jorge Neto), única figura a transitar com passe livre entre a cozinha, os aposentos das hóspedes e o quarto fétido da acamada Norma Desmond, ou melhor, Izabel. Em contrapartida, mesmo este personagem se torna incapaz de dominar a narrativa, posto que não enxergamos o mundo por seus olhos. Não se conhecem seus objetivos a longo prazo, seus rancores, seu passado. O olhar da direção se posiciona a igual distância de todas as mulheres, razão pela qual a imersão fica comprometida. Em certa medida, nem as senhoras da casa, nem o filme acreditam de fato no faz-de-conta.

O voyeurismo limitado se estende à construção externa das imagens, na hora de captar os quartos e a cozinha. O diretor Gil Baroni e o diretor de fotografia Renato Ogata gostam de observar interações pela parte externa do imóvel, o que poderia surgir uma conversa espiada, favorecendo o suspense. A câmera se situa perto demais da batente das janelas para sugerir um flagra; e distante demais para se converter em cúmplice. Há um homem mantido em segredo numa edícula ao fundo da casa, entretanto, na hora de visitá-lo, a carcereira deixa a porta aberta, acessível à chegada de qualquer um. Até por isso, quando uma série de mortes invade a trama, talvez o espectador permaneça distante de qualquer impacto emocional face ao desaparecimento de personagens que não conhecíamos de fato.

Assim, Casa Izabel possui dificuldade de escolher seus conflitos, seu foco narrativo, e trabalhá-lo até o final. A figura ameaçadora do sujeito amarrado é ignorada pela trama, que não sabe o que fazer com ele no terço conclusivo. O cadáver jogado num dos quartos jamais provoca conflitos de fato (não é descoberto, nem provoca arrependimento ou medo nos responsáveis pelo crime). Uma descoberta chocante para Leila, rumo ao clímax, não provoca efeito profundo. Ela apenas toma seu rumo, adotando uma solução pragmática, imediata. O filme tão fascinado por mudanças exteriores (as roupas, a maquiagem, a decoração) demonstra preocupação insuficiente com transformações de ordem psicológica.

Os atores se entregam com vigor, embora ofereçam resultados desiguais. Com tempo limitado de tela, Luís Melo maneja com evidente prazer os diálogos e os trejeitos, conseguindo se afastar da linha próxima da caricatura. Jorge Neto, ator em rápido crescimento, carrega o olhar de um tom hipnótico, entre a sedução, o desinteresse e a raiva. O corpo do ator também varia entre o caminhar maquínico por corredores e quartos e um tom lânguido, sensual, nas banheiras e na formação de Regina. No entanto, falta aplicar tamanho desenvolvimento ao trabalho de voz, ainda monocórdio, de pouca amplitude ou nuance. O excelente Zeca Cenovicz domina os embates cênicos e sugere uma embriaguez palpável decorrente do jogo de falsidades.

Na ausência de objetivos definidos, a morte se torna o elemento capaz de costurar a narrativa. Nem a sexualidade, nem o medo de um comunismo longínquo se sustentam durante a jornada. No entanto, Izabel está doente e morrendo, e sua casa também se aproxima do fechamento das portas. Suspeita-se que o filho Gabriel esteja morto, razão pela qual algumas pessoas serão assassinadas pelos cantos. Enquanto se pratica a caça a animais selvagens nas redondezas, espingardas dominam a decoração de entrada, e revólveres ficam bem visíveis nos bolsos de aventais. A trilha sonora, meio sensual, meio perigosa, nos prepara para as mortes que inevitavelmente chegarão.

Menos do que uma escapada inconsequente de homens que gostam de se vestir de mulher, Casa Izabel oferece uma imersão desesperada de sujeitos tentando escapar da morte. Para o grupo de meia-idade, tornar-se outra pessoa equivale a uma forma de expurgo, ou de superação simbólica da perenidade. (E não seria esse o objetivo de todo o cinema: substituir o real finito por sua representação eterna?) Seja a morte de uma noção de país “da moral e dos costumes” (afinal, trata-se de travestis conservadores, com aversão ao comunismo), seja a morte de seus casamentos ou dos corpos envelhecidos.

Talvez este seja o motivo pelo qual a fantasia dos homens não se sustenta: eles são assombrados demais pela constatação de seu declínio para se lançarem numa utopia delicada onde poderão ser belos, ricos e embriagados para sempre. Face à ameaça de destruição deste porto seguro, uma das personagens centrais consente com o ato terrorista (ou revolucionário?) de Leila. Uma hora, a evidência do fracasso corrompe a perspectiva do sonho. A maior beleza do projeto nasce deste embate entre uma deliciosa ilusão e o amargor do real. Diante de cadáveres e poças de sangue, torna-se impossível sustentar as tardes de champanhe entre mulheres da sociedade. A vida se impõe da maneira mais brusca possível, num final um tanto abrupto em termos narrativos, porém carregado de grande impacto visual e simbólico.

Casa Izabel (2022)
6
Nota 6/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.