Céu Aberto se dedica a um projeto de fôlego: acompanhar durante seis anos a vida de Andriele Soares, adolescente prestes a entrar na fase adulta. Enquanto ela amadurece, o Brasil se transforma. O procedimento não soa propriamente inédito, posto que diversos filmes, de ficção e documentário, investiram em iniciativas semelhantes. Trata-se de um cinema a longo prazo, que se constrói sem uma mensagem prévia a transmitir, abraçando o acaso e incorporando os desafios de percurso (a exemplo dos recentes Boyhood: Da Infância à Juventude, 2014, e Adolescentes, 2019).
A diretora Elisa Pessoa volta a sua câmera à menina da campanha, com sonhos de ser maquiadora, ou talvez ter seu próprio espaço nas fazendas da pequena cidade onde vive, no interior do Rio Grande do Sul. É interessante que a protagonista não possua alguma característica excepcional que justifique o foco: a autora parece privilegiá-la justamente pela capacidade de representar tantas garotas em situação semelhante. Andriele oferece um exemplo possível de ser mulher, do campo e jovem no Brasil atual.
É evidente a intimidade entre cineasta e personagem. A primeira se coloca em cena, faz perguntas à menina, provoca amigavelmente quando necessário. Já a segunda responde de maneira despojada, ora gostando da atenção, em registro egoico, ora enxergando a possibilidade de tirar vantagens do dispositivo, caso em que negocia um estojo de maquiagem gratuito com uma loja da região (“Vocês vão aparecer no filme”). Pessoa, orgulhosa como uma mãe simbólica, registra os argumentos da pretensa empreendedora.
Durante a pandemia de Covid-19, a câmera é entregue à própria Andriele para se filmar, e apresentar o mundo por seu ponto de vista. O dispositivo tampouco representa uma inovação, mas apresenta a possibilidade de contrastar as imagens profissionais da diretora com aquela da jovem, acostumada ao celular e às redes sociais. Infelizmente, este embate estético aparece pouco, sem fricções notáveis por parte da montagem. Pessoa prefere que os registros se fundam e se completem: até a edição carrega sua parcela de afeto e conciliação.
Faltam sentimentos, angústias, dúvidas, inseguranças — aspectos estes que tornariam Andriele mais próxima do espectador, e capaz de identificação.
No entanto, a principal surpresa diante deste diário é a ausência de intimidade. Seguimos anos na vida de uma pessoa, porém somos restritos a ações palpáveis, externas, com foco em grandes guinadas. Sabemos que ela viajou do campo à cidade, e de volta ao campo. Descobrimos que se apaixonou, se separou, reatou. Conseguiu um emprego, e então o perdeu. Este é o roteiro de um filme de ação, repleto de verbos: foi, fez, conseguiu, tentou, decidiu, agiu. Permanecemos à distância da garota disposta a oferecer seu próprio olhar.
Isso se dá pelo fato que Céu Aberto nunca mergulha na psicologia da jovem. Por que queria tanto ir à cidade? O que esperava encontrar? Como conheceu o garoto, de que maneira manifestava esse amor? O que levou ao término, e à reconsideração do relacionamento? O que houve no trabalho para ser dispensada? Como se sentiu após as (aparentes) recusas na investida de jovem aprendiz? Faltam sentimentos, angústias, dúvidas, inseguranças — aspectos estes que tornariam Andriele mais próxima do espectador, e capaz de identificação.
Ora, a jornada exclui tudo que poderia nos aproximar de sua maneira de pensar, seja por pudor, seja pela facilidade que as ações exteriorizadas trazem. Há uma proximidade maior com a mãe do que o pai, um acolhimento interessante do namorado em casa, um senso de autonomia, ao viver sozinha, que se dilui ao longo do tempo. Justamente, faltam esses processos, com sensações de causa e consequência. A cineasta pauta os principais pontos de mudança, porém evita construir aquilo que nos conduz de A a B.
Em paralelo, a tentativa de ilustrar uma evolução do Brasil, em paralelo ao crescimento da adolescente, se mostra acessória demais. Jornais e rádios citam as eleições, o coronavírus, as paralimpíadas, os jargões famosos de Jair Bolsonaro. O som em off sugere uma inserção social que a imagem jamais efetua por si mesma: de que maneira Andriele viveu a pandemia de coronavírus, para além da tristeza de estar fechada em casa? Ela se protegeu? Perdeu familiares, acreditou na ciência? O que ela pensa das vacinas, dos políticos?
Este percurso poderia ser facilmente aprofundado caso a câmera de dispusesse a acompanhá-la, literalmente, de manhã até a noite, penetrando os espaços de trabalho, as noites com amigos, os encontros com o namorado, as refeições com os familiares. Ficamos muito perto de um corpo e de um rosto, porém permanecemos à distância de tudo aquilo que tornaria a garota única, singular, e possivelmente exemplar. Existe uma contradição inerente entre mergulhar na vida de alguém durante seis anos, e barrar praticamente todas as vivências complexas do mesmo indivíduo.
Esteticamente, o documentário investe numa captação simples, de aparência humilde, do tipo que coloca a importância do tema acima da forma. Com uma textura digital de baixa qualidade, as criadoras tremem com a câmera na mão, perdem o foco em cenas simples do cotidiano, têm o som prejudicado ocasionalmente. Ao menos, o estilo se cola ao formato de filme entre amigos, espécie de jornada familiar onde o conceito se descobre ao fazer. Isso justifica perguntas como “O que você gostaria que fosse o filme?”, disparadas à garota.
Na sala de cinema durante o 11º Olhar de Cinema, Céu Aberto foi bastante apreciado pelo público, que riu com as falas sinceras da personagem, seguiu com interesse seu crescimento e aplaudiu calorosamente ao final. É importante notar que, apesar de todas as ressalvas que possamos fazer aqui, esta forma de linguagem encontrou seu público. Trata-se de uma tendência ao autocinema, à linguagem das redes sociais e do YouTube, onde o rosto e sua sinceridade constituem uma estética própria, um valor em si mesmos.