Conto de Fadas (2022)

Pequenas provocações

título original (ano)
Skazka (2022)
país
Rússia, Bélgica
gênero
Fantasia, Comédia
duração
78 minutos
direção
Alexander Sokurov
elenco
Igor Gromov, Vakhtang Kuchava, Lothar Deeg, Tim Ettelt, Fabio Mastrangelo, Alexander Sagabashi, Michael Gibson, Pascal Slivansky
visto em
Cinemas

Esta fábula sobre falsidades se abre com um letreiro falso. “Neste filme você verá apenas materiais de arquivo, sem o uso de tecnologias deepfake ou inteligência artificial”. O que se segue corresponde, precisamente, a uma manipulação em modo deepfake dos rostos de Hitler, Mussolini, Churchill e Stalin, presos no purgatório e refletindo sobre a vida. Até onde se saiba, nenhum cineasta foi ao purgatório com uma câmera para filmá-los. Descarta-se, portanto, a menção à imagem de arquivo. 

Este é o tipo de humor imediatista adotado pelo cineasta Alexander Sokurov em Conto de Fadas (Fairytale, no título internacional). Trata-se de uma pequena provocação entre o cinismo e a ludicidade, baseada nas quatro personalidades perambulando por um não-espaço, um não-tempo — logo estes nomes, tão associados e épocas e países muito específicos. A principal brincadeira do projeto consiste em descontextualizar sujeitos dependentes de um contexto — em outras palavras, desistoricizar a História.

O interesse do longa-metragem decorre muito de sua picardia, da ousadia decorrente de sua simples existência. Que outro cineasta teria concebido estas personalidades convivendo lado a lado, e se daria ao trabalho de efetivamente concretizar uma narrativa a respeito? Este será conhecido popularmente como “o filme de Hitler, Mussolini, Churchill e Stalin no purgatório”, um conceito sedutor por sua originalidade. A mera sugestão desta iniciativa desperta risos, suspeita, dúvidas. O valor da obra reside sobretudo em seu caráter retórico — no fato de ter sido realizada.

Dificilmente se imaginaria um encontro tão anticlimático e desinteressante entre figuras que determinaram os rumos do século XX.

Isso porque, na prática, a experiência diante das imagens e sons se revela modesta, para dizer o mínimo. Sokurov concebe seus protagonistas deambulando sem rumo, interagindo pouquíssimo um com o outro. Diante de cenários vazios, desprovidos de sons ou ações dinâmicas, eles repensam as guerras que venceram e perderam, os ódios raciais e prazeres ideológicos. Exercitam sobretudo os monólogos reflexivos, internalizados. Nenhum deles possui objetivos concretos, nem se envolve em qualquer conflito. Posicionar Hitler e Stalin face a face sem produzir nenhuma faísca soa como uma oportunidade perdida.

O roteiro privilegia as mínimas rusgas infantis. Um líder reclama que o outro fede, um segundo reclama do casaco feio do outro. Dois deles refletem sobre o fato de terem filhas ruivas, e comparam-nas. Eles pisam em algo fedido, e olham para a sola do sapato, suspeitando se tratar de excrementos. Existe cocô no purgatório? Os ditadores e governadores se resumem a homens emasculados, imaturos, brincalhões. Dificilmente se imaginaria um encontro tão anticlimático e desinteressante entre figuras que determinaram os rumos do século XX. 

O grau de pesquisa a respeito do quarteto se atém às linhas iniciais de suas páginas no Wikipédia. Hitler anda de um lado para o outro reclamando de judeus, conclamando os soldados mortos a se levantarem e lutarem pela soberania da raça ariana. Começa suas frases com “Minha luta” meia dúzia de vezes. Churchill caminha a esmo gritando “Minha Rainha!”, torcendo pelo reencontro imediato com a monarca. Stalin discute a religião enquanto fraqueza; Mussolini gosta de ser chamado de Il Duce. A investigação para por aí.

Quanto ao uso da tecnologia, ela revela tanto seus avanços quanto suas limitações. Sim, as figuras em cena evocam diretamente os quatro protagonistas, vestidos com os uniformes típicos para facilitar o reconhecimento. No entanto, o movimento da boca, sincronizado para as falas, revela-se de uma artificialidade atroz. Churchill, em especial, possui movimentos de lábios muito distantes do som emitido pelo ator — talvez a presença do bigode espesso ajude a disfarçar este problema com Stalin. Eles remetem tanto aos recortes de um livro de história quanto aos personagens de um videogame desatualizado.

Posto que a interação com cenários, objetos ou com a geografia do purgatório se prova quase nula (eles poderiam se encontrar sobre um palco teatral, sem real perda ao resultado), estes homens se limitam a diálogos frágeis, que giram em círculos. Nenhum deles se desenvolve, e a tecnologia tampouco se aprofunda a limites cômicos, aterrorizantes, ainda mais artificiais ou ainda mais naturalistas, que seja. As imagens dos primeiros cinco minutos se repetem em looping até o final. A presença eventual de multidões borradas como uma bruma espessa poderia levar a certo interesse de linguagem, caso desenvolvida. No entanto, as cenas se interrompem antes de qualquer potencial dramático.

Sokurov parecia ter em mãos o conceito digno de um curta-metragem, estendendo-o até a duração mínima do longa. Ao menos, Conto de Fadas sustenta a aparência de um sonho, de uma realidade suspensa, que convém à representação do deepfake. Se existe uma vantagem neste exercício de estilo tão ambicioso em sua premissa quanto modesto na realização, ela reside na comprovação de que ainda estamos muito distantes de uma utilização satisfatória ou minimamente complexa da inteligência artificial. O resultado se prova mais pertinente enquanto estudo de um fracasso artístico do que por suas supostas proezas. 

A exploração estética do preto e branco, das névoas, dos cenários animados e do falso-realismo se mostra tímida, e incapaz de se desenvolver ao longo do fiapo de roteiro. Pode-se falar num filme que não ocorreu, numa ideia excitante a respeito de imagens muito menos empolgantes. O preceito desenvolvido por Sokurov permanece intacto, como se ainda estivesse por vir o filme em deepfake capaz provocar o real, de levantar dúvidas a respeito do que vemos, de colocar na boca de terceiros algo que nunca disseram. Os limites éticos e morais desta tecnologia jamais são explorados pela obra munida de uma reflexão nula acerca de sua linguagem.

Quanto a Hitler, Mussolini, Churchill e Stalin, eles se tornam personas desimportantes, banais, coadjuvantes da própria trama. Talvez a verdadeira — e única — ousadia da proposta resida no fato de transformar quatro ícones determinantes à contemporaneidade em tipos triviais, esquecíveis, indignos de discussões, estudos, revolta, debate. Se os quatro foram marcantes em sua vida, tornam-se irrelevantes em sua versão tecno-fantasmática. Hitler se reduz ao bigode e ao antissemitismo; Churchill nutre uma obsessão pela rainha. Uma vez mortos e ressignificados pela linguagem pop, resumem-se à triste paródia de si mesmos.

Conto de Fadas (2022)
4
Nota 4/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.