É difícil perceber, a princípio, que espécie de cinema Talks Overnight (título internacional) pretende defender, e por que escolhe acompanhar estes dois personagens em particular. No terço inicial, a diretora e protagonista Su Qiqi observa os móveis de uma casa de classe média, à noite. Na penumbra, admira poltronas, mesas, camas vazias. Os dois corpos aparecem como peças suplementares da mobília. Igualmente silenciosos, estão parados, e interagem pouquíssimo entre si.
A obra aparenta investir na observação plácida e distante, evitando os plenos próximos, os detalhes na conversa entre marido e mulher. Muitos cineastas se contentariam com a linguagem apresentada pela cineasta neste segmento inicial: planos fixos; um preto e branco rígido, porém de baixo contraste; homem e mulher filmados na sombra, ou de costas, lendo poesia e disparando pensamentos simples sobre as suas vidas. “O que você tomou no café da manhã?”. O elogio do banal poderia constituir o objetivo central da trama, aparentemente desprovida de conflitos.
No entanto, o longa-metragem começa a se transformar. No segundo terço, dois amigos visitam o casal de protagonistas para o almoço. Em planos longuíssimos, a câmera observa os quatro, porém começa a propor enquadramentos-dentro-do-enquadramento, efetuando pequenos zooms, tilts e panorâmicas para se focar ora nas mulheres, ora nos homens. Surgem os primeiros close-ups, e também os conflitos iniciais, além de catarses propriamente ditas: os amigos brigam à mesa, ela chora, eles partem e deixam um gosto amargo no resto do dia. Curiosamente, a câmera prefere se focar nos rostos de quem escuta, ao invés daqueles que falam.
Uma viagem onde cada cena reconfigura a anterior, trazendo algo novo em termos de enquadramento, luz, temática e visão de mundo.
O projeto de Hong Kong abraça então os temas da solidão, do desentendimento entre casais, da incompatibilidade entre gerações (ambos discutem a dificuldade de compreender os filhos jovens). A questão da saúde mental passa a ocupar as falas, conforme se desenha no horizonte uma melancolia crescente, uma nostalgia transmitida pela atmosfera de lusco-fusco, cuidadosamente impressa pela fotografia. Os diálogos mencionam a depressão.
“Não fique pensando muito”, sugere o marido. “Não fique ansiosa. A ansiedade não ajuda em nada”, ele completa, pouco hábil na tentativa de ajudar a esposa. “Você acha que eu tenho problemas demais, mas estes problemas crescem dentro de mim”, ela contesta. A mulher confessa que a convivência com ele se tornou um fardo. “É uma coincidência estar com você, mas queria estar com você para sempre”, ele replica, num raro gesto de carinho. Em cena, ambos dançam com as palavras. Aproximam-se e se repelem, como num tango.
O poeta Ma Yuebo interpreta a si próprio, lendo escritos de sua autoria. Como sugere o título, as palavras dominam as interações, seja pelos diálogos entre a dupla central, seja pelas poesias sucintas e desesperançosas lidas por ele. Na era da incomunicabilidade (os dois mal se olham ou encostam, sacando com frequência os telefones celulares), eles encontram um ponto em comum pela admiração da arte dele, que também se converte em ferramenta de opressão de gênero: o marido ganha mais do que a esposa, e reclama da baixa contribuição dela nas contas da casa.
Conversas pela Noite se desenvolve ao longo de cerca de dois dias, reservando uma estrutura diferente para cada terço (sem qualquer forma de separação nítida entre os trechos). Na reta final, o estilo não-intervencionista se transforma por completo, quando ambos se encontram diante de uma apresentação artística baseada em O Processo, de Kafka — quem poderia ilustrar com maior precisão o absurdo da modernidade? Num gesto próximo ao realismo fantástico, os artistas se apresentam apenas para ele e ela, este casal tão especial e tão banal, que nem sequer possui nomes.
Neste instante, a estética abraça o abstrato, o furor, a construção artística. Não espera mais apreender o cotidiano, e passa a se impor sobre ele. A montagem se acelera, os efeitos sonoros tomam conta da narrativa. Imagens desconexas de incêndios são intercaladas com representações agressivas da peça, quando os atores rasgam telas e caminham rumo ao casal. O longa-metragem se torna progressivamente ambicioso, lírico: a poesia de Ma Yuebo contamina as imagens e transforma os planos destinados a representá-los.
Para a nossa surpresa, o tom aparentemente niilista do drama de apartamento se abre a leituras mais amplas da natureza, e às possibilidades de reconexão na dupla central. Inicialmente, Su Qiqi propõe o testemunho cúmplice e crítico de um casal em crise. No final, insere uma carga notável de otimismo através da longuíssima imagem do carro seguindo em frente, com ambos reunidos, além da metáfora da árvore que, apesar de morta, pode renascer e chegar a 600 anos.
É possível que o resultado soe hermético demais a parte considerável dos espectadores. Afinal, ele sustenta um palavreado atípico, entrecortado com falas dispersas ou filosóficas a respeito da contemporaneidade. No entanto, em seu trabalho de estreia, a cineasta, curadora, professora e crítica de cinema apresenta um controle preciso da mise en scène, alterando de modo sutil a princípio (e radical, quando visto em retrospecto) suas ferramentas de linguagem e pontos de vista.
Ao contrário de tantos filmes que esgotam suas ideias e discursos em poucos minutos, apresentando um sistema que copiam e replicam pelos próximos 90 minutos, a autora propõe uma viagem onde cada cena reconfigura a anterior. As sequências começam a trazer algo novo em termos de enquadramento, luz, temática e visão de mundo, sem parar, durante sucintos 76 minutos — tudo isso costurado pela textura coesa do preto e branco. Há um prazer especial em descobrir uma nova cineasta tão ousada, e dotada de um estilo particular em sua primeira obra.