Crônica de uma Relação Passageira (2022)

Amor não traz felicidade

título Original (ano)
Chronique d’une Liaison Passagère (2022)
país
França
gênero
Comédia, Drama
duração
100 minutos
direção
Emmanuel Mouret
elenco
Sandrine Kiberlain, Vincent Macaigne, Georgia Scalliet, Maxence Tual, Stéphane Mercoyrol
visto em
46ª Mostra de São Paulo (2022)

Seria difícil descrever a premissa deste filme sem soar como uma comédia romântica banal, do tipo que brota a cada semana nos serviços de streaming. Charlotte (Sandrine Kiberlain) e Simon (Vincent Macaigne) se conhecem, se apreciam, passam uma noite juntos e decidem manter um relacionamento sem amarras, baseado unicamente na atração sexual. Ora, é óbvio que se descobrirão profundamente apaixonados um pelo outro, e perceberão a dificuldade de ficar afastados, certo? Errado. Neste aspecto, os rumos começam a se distanciar bastante da idealização hollywoodiana.

O diretor Emmanuel Mouret sempre possui o gosto pela leve subversão cômica e irônica da representação do amor romântico. Seus filmes estão repletos de amantes fracassados, tipos frágeis, inseguros com seu desempenho sexual, com medo de não serem amados no dia seguinte, de dizerem a coisa errada, de provocarem a separação. Desejam o amor, e uma vez que o conquistam, se apavoram com a possibilidade de perderem tal preciosidade. Assim, ele tem traçado, filme após filme, a crônica de uma sociedade neurótica, e engraçada justamente por ser tão fácil de se identificar. Aqui, o sentimento amoroso não ajuda em nada, pelo contrário: a paixão consiste no princípio da ruína.

Assim, os filmes soam ao mesmo tempo solares e pessimistas, divertidos e amargos. Para quem espera os finais felizes como recompensa emocional pelos quiproquós vividos na jornada, resta a decepção de vê-los, na maior parte dos casos, infelizes, solitários de novo, ou felizes com outros parceiros encontrados mais tarde. Tudo e nada se resolve nestas tramas que costumam começar quando o amor já aconteceu (evitando assim a faísca dos primeiros encontros) e se conclui antes de qualquer ação de caráter “definitivo” (o casamento, o divórcio, o “felizes para sempre”). Trata-se de fragmentos de vida que possuíam outras complicações antes de a aventura começar, e terão novos problemas depois da imagem final. 

Podemos dizer que o amor não basta para a sustentação da vida em casal, e mais do que isso, que as pessoas nem sempre sabem amar. Amam torto, errado, às pressas. Este é o sentimento que interessa ao filme.

“A paixão é caos e destruição”, afirma Charlotte, mulher muito bem resolvida com sua vida amorosa, sexual, e com o próprio corpo. Tamanha firmeza se opõe ao estilo vacilante e emasculado de Simon, que teme não agradar, e afirma, desde o segundo encontro, que talvez não apresente uma performance medíocre na cama. Os diálogos estão repletos de um cinismo mordaz, quando os personagens se provocam, aproveitam as contradições alheias e pedem para elaborarem, apenas para ver seus parceiros se afundarem em explicações insuficientes. A tradicional briga das comédias românticas (necessária para que os amantes reatem ao final) é substituída por embates constantes, que nunca impedem a repetição dos encontros.

A estrutura, por si própria, está repleta de ironias. Crônica de uma Relação Passageira demonstra um relacionamento bastante duradouro, apesar de ambos desejarem que seja breve. As cenas curtas, sobretudo no início, se assemelham à comédia de esquetes — cada sequência é determinada pelo encontro da dupla que se vê, se provoca, às vezes faz sexo, e se despede como se esta fosse a última vez. No entanto, os letreiros contam as datas, com um rigor excessivo e engraçado para algo de pretensão informal (incluindo data, mês e dia da semana), quando se veem novamente para um novo último encontro casual. 

Os atores estão excelentes neste registro, tanto por talento próprio quanto pela capacidade de Mouret em trabalhar este tipo de comicidade de fundo triste. Kiberlain constrói uma mulher leve, despreocupada, de potência nas falas. Macaigne multiplica o sujeito woodyalleniano que vem compondo filme após filme — talvez seja o caso de buscar composições diferentes para sair do enésimo sujeito fracassado no amor. Mesmo assim, eles dominam o teor desejado pelo cineasta, que parte da leveza extrema até chegar em cenas longas, menos paródicas, de maior peso e duração, quando percebem a contradição inevitável de uma relação passageira que não se interrompe. Gradualmente, a comédia de costumes permite a entrada do drama, sobretudo quando uma terceira personagem passa a compor um triângulo amoroso, neste mundo onde apenas Simon e Charlotte pareciam existir (a esposa dele, e o filho dela, nunca entram em cena).

Esta guinada da superfície às profundezas é pautada por um jogo cênico ágil, incluindo personagem em constante movimento, seja caminhando nos parques e museus, seja transitando entre diferentes cômodos da casa. O diretor demonstra uma verdadeira paixão pelas batentes de portas e paredes dentro dos apartamentos, separando os amantes e criando novos quadros-dentro-do-quadro. O plano de uma noite no apartamento com o amigo colombiano; a tentativa de sexo a três com uma mulher inexperiente e a tarde furtiva num hotel parisiense criam uma dinâmica do desconforto permanente: ninguém está confortável a ponto de aproveitar o carinho do outro. Sempre existe o medo de ser descoberto, de cair em contradição. 

Existe uma tensão, devidamente cômica, impedindo os personagens de aproveitarem o relacionamento que afirmam apreciar. O roteiro se desenha como uma valsa: quando um personagem dá um passo adiante, o outro recua; e vice-versa. Guinadas bruscas no acordo entre eles são desenhadas como pequenos absurdos cotidianos, sujeitos a transformar tudo — o destino está ausente desta configuração caótica de corpos e afetos. Há uma atenção magistral às pequenezas do dia a dia, capazes de causar desgaste ou desentendimentos. Mouret as capta com uma luneta, e então exagera para finalidades humorísticas. Podemos dizer que o amor não basta para a sustentação da vida em casal, e mais do que isso, que as pessoas nem sempre sabem amar. Amam torto, errado, às pressas. Este é o sentimento que interessa ao filme.

Ao final, Crônica de uma Relação Passageira terá explorado os encontros e desencontros, a euforia da paixão e as lágrimas do término, porém numa ordem inversa àquela das comédias românticas tradicionais: ao invés da imposição do amor como forma de aplacar a tristeza e trazer estabilidade, é a solidão que se impõe, mais cedo ou mais tarde, para contaminar o afeto. Tristeza não tem fim; felicidade, sim. O filme consegue ser, portanto, hilário e triste. Suas imagens coloridas, em pontos turísticos e belos de Paris, embalam o confronto de duas pessoas que não sabem como ficar juntas. Ri-se da nossa miséria, da nossa imaturidade, da nossa tristeza. O niilismo autoconsciente do projeto é irresistível.

Crônica de uma Relação Passageira (2022)
9
Nota 9/10

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