Entre Dois Mundos (2021)

A miséria em faz-de-conta

título original (ano)
Ouistreham (2021)
país
França
gênero
Drama
duração
106 minutos
direção
Emmanuel Carrère
elenco
Juliette Binoche, Hélène Lambert, Léa Carne, Émily Madeleine, Évelyne Porée, Didier Pupin, Aude Ruyter
visto em
Cinemas

Marianne Winckler (Juliette Binoche) limpa os vasos sanitários de um banheiro público. Ela esfrega, limpa o chão, e depois corre para outro emprego, onde arruma dezenas de cabines de uma grande embarcação, no ritmo de quatro minutos por quarto. Acorda de madrugada para pegar o transporte público, e volta para casa exausta, com dores nos braços e no corpo. No dia seguinte, repete a dose. Em virtude do currículo esvaziado, sem formações relevantes, ela descarta a possibilidade de conseguir um cargo promissor. As amigas lhe explicam que ela deve envelhecer ali, entre banheiros e quartos, entre faxinas e arrumações.

No entanto, a protagonista não precisaria desempenhar estes trabalhos forçados. Afinal, Marianne é uma escritora de classe média-alta que, no intuito de escrever um livro a respeito da exploração das mulheres no cais, decide experimentar a vida alheia. Ela abandona o apartamento confortável em Paris, isola-se de amigos e conhecidos, e mantém em segredo a reclusão na pequena cidade porteira onde decide viver. Convenientemente, nenhuma pessoa próxima vem procurá-la, ou indagar a respeito de seu destino. Ela pode recomeçar seu percurso do zero. Entre cada turno exaustivo, anota as histórias num diário, no intuito de transpô-las ao livro. Assim, esconde a verdade das colegas. Para as demais trabalhadoras, e também para as contratantes, trata-se de uma mulher divorciada, em busca de um emprego qualquer.

A escritora nunca pensa se estaria traindo a confiança das amigas, explorando suas vidas para ganhar dinheiro e fama — e o filme a acompanha nesta abordagem.

A verdade a respeito da heroína surge progressivamente no roteiro de Entre Dois Mundos. Caso o diretor e roteirista Emmanuel Carrère, baseado no texto de Florence Aubenas, anunciasse a atitude da mulher desde o princípio, convidaria o espectador a um jogo provocador de avaliação moral. Neste caso, poderíamos tanto aderir à postura dela quanto nos distanciar. No entanto, a obra prefere protegê-la de tal experiência. Em primeiro lugar, somos convidados a vê-la como trabalhadora esforçada, dedicando-se seriamente ao ofício. O longa-metragem parte do pressuposto que as intenções de Marianne são legítimas e defensáveis, razão pela qual evita olhá-la com distanciamento. Primeiro, propõe a admiração pela heroína. Depois, revela suas reais motivações.

Este princípio desperta algumas das qualidades, e também limitações éticas do projeto. Pode-se questionar a decisão de narrar a história pelo ponto de vista da escritora, ao invés de suas colegas de embarcação. O filme mergulha por completo neste ponto de vista externo, admirando a dureza da vida de Chrystèle (Hélène Lambert), Marilou (Léa Carne) e Justine (Émily Madeleine), em modo piedoso e condescendente. Nós nos compadecemos porque a vida delas, estas mulheres pobres de verdade, incapazes de abandonar o cargo quando tiverem reunido informação suficiente para um livro, são diferentes demais da nossa. Existe uma verticalidade no olhar, de cima para baixo.

Além disso, Marianne jamais questiona a legitimidade de suas próprias ações — e o filme a acompanha nesta abordagem. A escritora nunca pensa se estaria traindo a confiança das amigas, explorando suas vidas para ganhar dinheiro e fama. Parece surpresa quando alguém atesta o fato óbvio que, para ela, esta vida dura significa um faz-de-conta, uma simulação temporária, que ela pode abandonar quando bem desejar. Por mais que se esforce nos sanitários e quartos, jamais conhecerá de fato a necessidade, a urgência ou a falta de perspectivas das demais funcionárias. Esta vivência constitui para ela um laboratório — com o diferencial que os atores profissionais, em situações semelhantes, revelariam seus planos aos demais por motivos éticos.

Alerta: pequenos spoilers a seguir.

A heroína acredita que os fins justificam os meios, e Carrère assina embaixo nesta proposta. Vale tudo em nome da produção de uma bela obra de arte, certo? Winckler nem mesmo hesita ao selecionar histórias, termos e passagens. Jamais pondera a respeito da maneira adequada de preservar as anedotas reais compartilhadas, em sigilo, pelas amigas. O livro surge pronto, finalizado, e constitui um sucesso. Na reta final, as descobertas foram feitas, as mulheres de Ouistreham (em sua maioria) perdoam Marianne, sentindo-se orgulhosas de figurar no livro de prestígio. A artista receberá um pagamento considerável pela apropriação das confidências de terceiros, porém quase ninguém se incomoda com isso. A heroína recebe agradecimentos por sua coragem, e por contar a verdade a respeito das vidas sofridas num livro à disposição de todos.

O final até ensaia um mea culpa da obra, quando a câmera permanece (enfim) junto a Chrystèle e Marilou, em detrimento da artista. Esfrega-se na cara da mulher burguesa os limites deontológicos de seu gesto, além do altruísmo oportunista que demonstrou durante o período passado juntas. Mesmo assim, Marianne, por si mesma, se vê livre de uma crise de consciência. Continua serena a respeito de suas atitudes. O limite desta imersão silenciosa jamais constitui o tema do filme, somente um pano de fundo que os criadores evocam ocasionalmente, para evitarem críticas ao seu posicionamento ideológico. Entretanto, a defesa do discurso do longa-metragem permanece junto à autora. O livro justifica os meios.

Por este motivo, as belas atuações servem a apaziguar um caos sanitizado. Ao se posicionar junto à mulher burguesa, ao invés das trabalhadoras reais, o filme perde a oportunidade de conhecer este mundo através da subjetividade delas. Prefere o ponto de vista da estrangeira, a espiã, a atriz. Juliette Binoche está excelente, como de costume, distante de qualquer vaidade de corpo ou voz. Ela oferece um corpo despojado, em perfeita coesão com as atuações de Hélène Lambert, Léa Carne e Émily Madeleine. As melhores cenas decorrem das brincadeiras, provocações e questionamentos entre elas. O cineasta atinge momentos de bela cumplicidade no dia a dia das colegas.

Em contrapartida, Entre Dois Mundos contribui a questionar, uma vez mais, os limites deste realismo social tipicamente francês. A performance da precariedade domina parte considerável dos dramas polidos e bem-intencionados que, sob pretexto de conscientizarem o espectador a respeito de uma causa grave, objetificam e instrumentalizam a pobreza para enaltecer a vida do herói (no caso, a heroína com coragem de se sujeitar a tal regime explorador). O roteiro denuncia a pejotização do trabalho e a dinâmica da sobrevivência, além da impossibilidade de ludicidade, lazer e contemplação (“Eu não tenho tempo para olhar o mar”, pontua Chrystèle). Entretanto, para isso, precisa enaltecer a figura que, sob pretexto de desenvolver uma grande obra de arte, abusa da confiança das verdadeiras trabalhadoras e trai o pacto de cumplicidade construído entre elas. De certa maneira, a atitude de Marianne Winckler não se difere tanto daquela de Emmanuel Carrère.

Entre Dois Mundos (2021)
5
Nota 5/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.