Em Entrelinhas, o diretor Guto Pasko denuncia os horrores ocorridos durante a ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985. Ele se concentra na perseguição a estudantes e artistas; nos sequestros, na tortura, nos assassinatos sem qualquer forma de processo legal às vítimas. Na coletiva de imprensa, os criadores relembraram a importância de mencionar o assunto, manter esta memória viva e impedir que atrocidades semelhantes se reproduzam nos nossos tempos. Até aí, impossível discordar das intenções: o tema, de fato, merece ser amplamente debatido no país que jamais condenou nenhum de seus torturadores.
Entretanto, a questão se encontra em como representar a ditadura. Qual seria a melhor maneira de resgatar o episódio, longe das armadilhas da espetacularização e do didatismo? Como se comunicar com as novas gerações, enquanto se honra as anteriores, que sofreram a perseguição policial? Com quais artifícios se pode trazer de volta a figura de militares torturadores, escapando ao maniqueísmo evidente? Ora, bastaria repetir que houve ditadura, e ela foi ruim? Será que, décadas depois, ainda nos encontramos na fase de constatação dos fatos?
O longa-metragem opta por um viés clássico-narrativo. Acredita que o caminho ideal para discutir as torturas e perseguições consiste em encenar torturas e perseguições. A decisão pode parecer óbvia, mas não é: os fatos divergem bastante dos sentimentos em relação aos fatos, de um discurso em relação aos fatos. O cinema de horror, a linguagem fabular, as metáforas e poesias mais brutais já foram empregadas no intuito de representar a ditadura, sem necessariamente recriá-la enquanto tal. O cinema pode ir além da reconstrução naturalista da vida como a vemos (e vimos).
Pasko opta por uma dramatização comportada até demais. Pode-se falar em um processo de netflixização do audiovisual, onde até o horror precisa ser liso, elegante, palatável ao gosto do público médio.
Mesmo assim, Pasko opta por uma dramatização comportada até demais. Pode-se falar em um processo de netflixização do audiovisual, onde até o horror precisa ser liso, elegante, palatável ao gosto do público médio. Tal pasteurização começa pela escolha do elenco, ao se chamar uma atriz de quase 30 anos para interpretar uma garota de 18 anos. Por mais dedicada que seja a artista, ela jamais convence enquanto estudante do Ensino Médio. Isso não diz respeito ao talento de Gabriela Freire, certamente muito dedicada, e evitando arroubos de sentimentalismo. No entanto, aponta para escolhas questionáveis da produção.
Em seguida, cenários e figurinos são limpos, amplos e vazios, a exemplo de um imponente palco teatral. As roupas parecem recém-compradas e saídas da tábua de passar. No caso da protagonista, a caracterização da menina pueril beira a fantasia de estudante de cabelo impecável, meias altas, camisa engomada. Enquanto isso, casas e delegacias são silenciosas, perfeitamente arrumadas com seus móveis novíssimos. Nenhum destes lugares possui vida de fato — soam tão verossímeis quanto os apartamentos decorados por imobiliárias, dispostos à visitação de possíveis compradores.
Som e fotografia tampouco colaboram para a empreitada. Pense em uma delegacia do DOPS sem ruídos, sem intervenções nem entra-e-sai de pessoas. Todos se sentam comportadamente em suas cadeiras, no ponto exato onde a luz lhes banha o rosto. O hospital não possui outros pacientes, nem sinal de urgências. Mesmo celas de detenção e galpões de tortura mostram-se surpreendentemente organizados, simétricos, com pequenas sujeiras cuidadosamente dispostas aqui e acolá. A heroína ostenta um ferimento-maquiagem discretamente posto no canto da boca, tal qual ocorre aos heróis do cinema de ação, enquanto a sujeira da “ala especial” é representada por dois hamsters pousados ao solo.
O choque da heroína ao escutar gritos de tortura logo ao lado se traduz num barulho baixo e distante, acompanhado de um líquido branco-transparente saindo da saia (aquilo deveria ser urina? O instante visava significar o desespero?). O perigo de serem jogados do alto de um helicóptero diretamente nas cataratas do Iguaçu se converte em planos aéreos belos, quase turísticos da natureza local. Sim, um rapaz leva choques em plano próximo (Renet Lyon, ator de forte potencial, apesar do pouco tempo de tela), ao passo que outra é jogada na cela com sangue no meio das pernas, sinalizando um estupro.
Para deixar claro: nenhuma forma de cinema precisaria filmar as atrocidades de perto, de maneira figurativa, para se fazer crer. Não se reivindica nada disso aqui. No entanto, os sujeitos permanecem na condição de anônimos. Por qual ideal luta o colega nu e torturado? Qual a história da garota estuprada? Por que fazer mistério ao espectador quanto ao possível envolvimento de Beatriz em protestos contra o governo militar? Pasko elabora uma indignação educadíssima, com medo de chocar — um horror com medo de ser horrível, um grito sem coragem de gritar. As cenas de interrogatório, em salas escuras e elegantes, e as paredes das celas com aparência de tapume teatral recém-pintado jamais permitem a crença naquelas situações.
De modo geral, Entrelinhas sofre da artificialidade da mise en scène, que opta por cenas em planos abertos, fixos e bem compostos, imagem profundamente nítida, luz disposta nos cantos de interesse. Somados aos diálogos duros demais para o registro oral (repletos de verbos na primeira pessoa do plural, além dos “Fique tranquilo” e “Terá seus direitos”), soa como uma teatralização bastante rígida e pomposa de um evento que se pretende mostrar como asqueroso. A proposta resulta contraditória: por que relembrar a ditadura por tamanha aura de refinamento e harmonia das imagens?
Ao final, a obra “livremente inspirada em fatos reais” (sic) nos lembra da dificuldade contínua de nossas representações cinematográficas a respeito deste período nefasto da história brasileira. Ao mesmo tempo em que o drama chega aos cinemas, O Mensageiro, autobiografia de Lúcia Murat, transparece fraquezas e incômodos semelhantes. Ambos se dedicam a mostrar as coisas como realmente são, trazendo a verdade por trás da versão oficial.
Ora, em tempos de fake news e “fatos alternativos”, tais alegações sustentam a aparência de uma versão a mais, uma opinião suplementar em meio à disputa de narrativas. Parecem tão corajosas, em sua frontalidade, quanto inócuas enquanto forma de comunicação: tendem a ser vistas apenas por aqueles espectadores que já reconhecem os atos bárbaros dos militares. Ou alguém supõe que a direita bolsonarista pagará pelo ingresso?
Cada vez mais, percebe-se que os melhores filmes brasileiros a respeito de tais mazelas não as retratam com tamanha linearidade, cronologia e pedagogia. Preferem o exagero, o absurdo, a paródia, o cinema de gênero. Apenas ali, na fuga do real, encontra-se o distanciamento necessário para criticar a própria realidade. No terreno da “reconstituição dos fatos”, encontra-se apenas um faz-de-conta endurecido, apartado de qualquer senso palpável de repulsa através da estética do filme, da linguagem dos planos, da luz, do som. Quando optam por esta normalidade afável em relação aos militares, os projetos parecem, ironicamente, tolerá-los, normalizá-los, ou, pelo menos, minimizar sua responsabilidade.