Em uma das primeiras cenas deste drama belga, chove dentro da casa dos protagonistas, literalmente. A goteira impede a irmã mais velha de dormir, obrigando-a a se mudar ao quarto do irmão. Este movimento resume a abordagem do projeto na totalidade: Purdey e Makenzy se encontram num lar abandonado, literal e simbolicamente. Diante da precariedade ao redor, podem contar apenas um com o outro. No quarto ao lado da goteira, a mãe dorme profundamente.
A diretora Paloma Sermon-Daï promove uma crônica do lar em crise, ou da passagem traumática à fase adulta. Os irmãos têm 15 e 17 anos, e precisam conseguir dinheiro sozinhos, visto que a mãe, negligente, desaparece durante semanas com os namorados, sem avisar os filhos de seu paradeiro. Os dois se viram como podem: ela busca um emprego de faxineira, e ele passa a roubar bicicletas dos turistas. O garoto, mais infantil, sonha com o retorno da mãe, enquanto a garota desiste de alguma forma de acolhimento.
Neste sentido, amadurecer significa se perceber sozinho na sociedade. A dupla busca ajuda do namorado dela, dos serviços municipais, dos empregadores na companhia de limpeza. O retorno é escasso, e pouco interessado. Ninguém os observa, nem quando efetuam boas ações, nem quando transgridem a lei. Surge assim um retrato da invisibilidade social, da falta completa de perspectivas de mudança. Ao buscar um apartamento no centro da cidade, Purdey recebe uma resposta condescendente, repleta de desprezo, por parte do agente imobiliário. Eles não pertencem a lugar nenhum.
O resultado se alinha a tantos dramas europeus polidos, agradáveis ao olhar, e cientes de problemas políticos sem realmente investigar causas, consequências, nem alternativas.
Felizmente, a direção evita qualquer miserabilismo no olhar os jovens. São vítimas do sistema, sem dúvida, porém fogem à autocomiseração. Ele tenta tapar a goteira da casa de maneira improvisada; ela procura um contrato suplementar que lhe pague mais. O roteiro tampouco os pune por seus erros, evitando a tradicional cena hollywoodiana em que o irmão seria pego e responsabilizado pelos roubos, ou pelo ataque a um garoto rico. A autora prefere o desenho de um cenário amoral, desprovido de catarses ou reviravoltas dignas deste nome. No dia seguinte, a situação continua a mesma dos dias anteriores.
Em alguns instantes, os criadores recorrem a metáforas claras até demais. Enquanto limpa os vidros, Purdey testemunha a cena feliz da família de margarina brincando com os pais no jardim — um instante de carinho paterno que ela certamente nunca teve. Makenzy, por sua vez, agride o turista adolescente por possuir dinheiro e uma figura paterna, algo que lhe soa como uma ofensa esnobe. Na cena seguinte, a mãe é encontrada jogada no chão sujo do corredor, embriagada. O filho apenas a carrega escadas acima, até o quarto.
Logo, os únicos instantes dotados de força dramática provêm do exagero da miséria, sublinhando uma situação suficientemente clara até então — até por constituir o único dilema de todo o longa-metragem. A estética nítida, colorida e bem comportada (com iluminação, enquadramentos e montagem tão competentes quanto acadêmicos) jamais transmite a perturbação destes heróis. Conforme sofrem silenciosamente, a linguagem adota a impressão de um mundo em perfeito funcionamento. A poesia da interação entre irmãos nunca contamina a aparência do filme.
Ao menos, existe a preciosidade dos instantes de afeto fraterno. Purdey Lombet e Makenzy Lombet (dois irmãos na realidade, que atuam com seus nomes verídicos) se provocam e se ajudam, demonstrando evidente cuidado um pelo outro. Os instantes cotidianos, passando creme na espinha alheia e criticando o modo de comer constituem os melhores momentos do projeto singelo, que adora sugerir um contexto social e uma configuração psicológica jamais desenvolvidos na trama.
O resultado se alinha a tantos dramas europeus polidos, agradáveis ao olhar, e cientes de problemas políticos sem realmente investigar causas, consequências, nem alternativas. Trata-se da cartilha típica dos festivais de cinema, dispostos a abraçar uma competência evidente na direção dos atores e na maneira de filmar. Mesmo assim, despertam pouca reflexão, a partir de um olhar um tanto impessoal ao abandono dos protagonistas. Sermon-Daï constata o problema muito bem, e então para por aí — algo bem retratado pela cena de conclusão, abrupta e pouco satisfatória.
Obras excelentes ou péssimas tendem a permanecer na memória durante muito tempo, provocando sensações fortes. No entanto, as medianas se esvaem com rapidez, passam incólumes pelo filtro do olhar, sobretudo ao lado 360 filmes, como ocorre na 47ª edição da Mostra de Cinema de São Paulo. Há muitos motivos para apreciar este trabalho, porém poucos para defendê-lo ou se apaixonar por ele. Às vezes, o cinema mais “profissional” e “correto” em sua disposição também resulta no menos instigante aos sentidos.
Isso não retira os méritos pontuais, nem invalida o esforço de uma produção coesa, coerente, e marcada por duas belas atuações. Este cinema de personagens, acostumado a acompanhar uma ou duas figuras escolhidas por onde andem, com a câmera colada ao rosto e à nuca, muitas vezes sem rumo definido, carrega suas vantagens em termos de identificação com o espectador. Entretanto, apresenta certos limites enquanto visão de mundo e exploração de um contexto político mais amplo. Podemos começar a questionar esta cartilha pós-Dardenne ainda tão vigente nos festivais europeus e, sobretudo, no cinema belga. O que as novas gerações têm a oferecer em sua proposta autoral?