Seria fascinante estudar a nossa tendência contemporânea a rejeitar qualquer exposição da intimidade na tela grande dos cinemas. Cresce a percepção acerca da necessidade de separar o público e o privado: o cinema, onde se senta com desconhecidos no escuro, seria um lugar público. Já o sexo, o corpo e a nudez diriam respeito à esfera privada.
Logo, não seria conveniente expô-los na dimensão ampliada de uma tela de cinema. A observação da nudez alheia deveria ocorrer solitariamente, de modo escondido, envergonhado, culpado (quando a religião se envolve), no domínio reprimido da masturbação, do contato sexual, dos desejos e pulsões. Face a qualquer imagem do corpo no audiovisual, chegam as reclamações recorrentes de que tal cena seria “desnecessária”.
Mas o que poderia ser considerado “necessário”, no sentido de “indispensável”, em um filme? As vozes neoconservadoras (neologismo contraditório, porém justificável em 2024) dizem igualmente se tratar de algo “apelativo”. Ora, toda imagem não equivaleria a uma forma de apelo, seja ele emocional, afetivo, pulsional? O próprio ato de assistir a um filme, experimentar sensações e emoções no espaço do cinema, não carregaria um teor erótico inerente à experiência coletiva?
O filme transborda de afeto, de consciência política e precaução ética, embora seja menos expressivo no uso de linguagem e estética.
Essas ideias ajudam a pensar a respeito de Eu Também Não Gozei, documentário que se propõe a expor a intimidade da cantora e atriz Letícia Bassit. Ela engravidou, teve um bebê, e ignora a identidade do pai. Quatro homens podem ser o pai de sua criança, porém dois deles se recusam a fazer o teste de DNA, por medo de se descobrirem responsáveis pelo garoto. O filme segue sua protagonista em todas as cenas, com a câmera colada ao corpo, ao rosto, à voz. Letícia ocupa a integralidade das cenas.
A diretora Ana Carolina Marinho concentra as atenções exclusivamente nos temas da maternidade e da paternidade. Conhecemos pouco a respeito de seu trabalho, da relação com os pais, das performances contemporâneas acerca do feminino. Jamais acompanhamos a rotina da protagonista para além do dilema único e obsessivo do abandono parental em paralelo à vivência da maternidade solo.
Durante mais de um ano, o roteiro segue os principais passos desta jornada: o primeiro teste de DNA, o segundo teste, o confronto telefônico e por e-mail com os ex-parceiros, as tentativas desajeitadas das amigas em ajudá-la, a conversa em cartórios e escritórios de advocacia a respeito de seus direitos e estratégias judiciais. Letícia quer saber a verdade, embora não tenha qualquer interesse em exigir dinheiro do pai de Pedro, nem forçá-lo a participar da criação do menino.
Felizmente, o ponto de vista da cineasta se mostra aliado e cúmplice da personagem principal. Nunca questiona Letícia em suas atitudes (ela deseja estabelecer a paternidade pelo direito de fazê-lo, e pronto), nem expõe as circunstâncias do relacionamento com os possíveis pais — isto não vem ao caso. Qualquer julgamento moral será descartado: a mulher tem o direito de se relacionar com os homens que desejar, na hora que lhe convier. Ela repete que não tem vergonha de sua história e, por isso mesmo, não cogita mentir ao filho quando este vier a lhe perguntar a respeito da identidade do pai.
Há evidente intimidade entre a autora e sua personagem-tema. Letícia se mostra confortável para expor o corpo e as dúvidas em forma de conversas tão sinceras quanto descontraídas. Tal proximidade permite interações espontâneas, respeitadas pela montagem, que permite cenas longas, em plano único, quando a artista se encontra sentada à mesa, ou na cama. O dispositivo jamais se sobrepõe ao humanismo — em outras palavras, Ana Carolina Marinho desenvolve um filme para chamar atenção a Letícia e seus dilemas, não às suas habilidades na direção.
Tamanho desprendimento resulta, em contrapartida, numa estética crua, espontânea, que às vezes beira o descuido. Dentro de casa, Letícia conversa pacificamente sentada à mesa, porém o som direto é bastante prejudicado (seria uma captação direto da câmera?). A fotografia na cena do Uber possui tal grau de superexposição que metade da imagem se resume a um borrão branco. Dentro do carro, enquadra-se o rosto como pode, da melhor maneira encontrada ali, na hora, na urgência. A mise en scène transparece tanta abertura ao acaso quanto despreparo quanto à melhor maneira de captar imprevistos.
Prioriza-se, em contrapartida, o valor da imagem ao vivo, em tempo real. Muito segura de que encontrará o pai de seu filho no próximo teste de DNA, Letícia abre o envelope em frente às câmeras, com a porta do carro aberta, para facilitar a captação do momento. A visita às advogadas, as ultrassonografias durante a gravidez e os telefonemas aos ex-parceiros também ocorrem diante do dispositivo. A fotografia capta o instante em que a própria cineasta, em off, explica suas intenções: “O filme é sobre você e a força de passar por isso sozinha”.
Logo, expõe-se o corpo tanto quanto as dores, as dúvidas, a fragilidade emocional. Misturam-se registros do compartilhamento de si: parte será controlada e ciente — as performances de Letícia a respeito de sua história. A outra parte transparece o caráter conduzido e parcialmente estimulado pela direção — a conversa com a amiga que também atravessa a maternidade solo, ou com duas outras colegas no sofá, sempre muito próximas da câmera. A fala dos supostos pais é dublada (o que implica em certo grau de ficcionalização da abordagem), e os nomes deles jamais são mencionados, em precaução contra represálias judiciais.
Eu Também Não Gozei se encerra muito bem. Evita transformar a descoberta da paternidade no objetivo final deste trajeto. Interessa às criadoras lançar uma discussão a respeito do abandono paterno, tão comum no Brasil; do machismo estrutural; da idealização da maternidade; das leis “feitas pelos homens, para os homens”. O filme transborda de afeto, de consciência política e precaução ética, embora seja menos expressivo no uso de linguagem e estética.