Êxtase pretende ser um filme delicado a respeito de uma violência: a anorexia. No caso, trata-se de uma agressão ao próprio corpo, quando a pessoa se recusa a comer. A diretora Moara Passoni evita os principais vícios tanto do documentário explicativo quanto da ficção inspiradora. Nada de pessoas chorando, de pais desesperados com a saúde da menina, nem de acusações contra os padrões de magreza impostos pela sociedade. A cineasta lança voos mais altos e ambiciosos.
Em primeiro lugar, ela enxerga o distúrbio enquanto metáfora para as tentativas de controle social a respeito do corpo feminino, o que permite uma associação com o aborto e a perseguição policial especificamente direcionada às mulheres. Em segundo lugar, adota o ponto de vista de uma garota atravessando a perda progressiva de peso e o enfraquecimento do corpo. “Mas por que ela simplesmente não come?”, perguntariam os menos empáticos, da mesma maneira que se questiona aos depressivos: “Mas por que você não pensa em coisas felizes, tenta sair um pouco de casa?”. Felizmente, o filme evita a oferta de uma solução fácil a um problema complexo.
Por isso, enxerga a protagonista enquanto agente de suas transformações corporais, ao invés de mera vítima. A garota possui consciência da possibilidade de morrer, e critica os médicos que buscam engordá-la sem entender os motivos que levam à privação de comida. Ela se defende dos principais estereótipos a respeito da magreza enquanto beleza ou alguma forma de purificação espiritual, e nunca culpa a educação nem a conduta dos pais pela situação. O projeto evita apontar dedos a possíveis culpados. Trata-se de um convite à reflexão, ao invés do julgamento moral.
Para a leveza do corpo, Passoni busca uma proposta de leveza estética. O drama impressiona pela quase totalidade de imagens dissociadas do som. Em outras palavras, presenciamos cenas da menina dançando balé ou correndo pelas ruas, enquanto escutamos sons não-referentes: um comentário em off, uma digressão intimista, uma canção na trilha sonora. O filme é comentado, em sua totalidade, por vozes de mulheres, tanto adultas quanto adolescentes e crianças. Elas discutem o próprio corpo, a cidade, os sonhos, as dores. Lançam ideias desprovidas da preocupação em explicar, ou de chegar a uma conclusão precisa.
É difícil não comentar a onipresença da narração em off, lânguida e sussurrada, quando as vozes femininas pensam seus corpos e espalham poesias pela banda sonora.
O resultado se assemelha a uma espécie de “Querido diário”, tanto pelo tom confessional, quanto pela valorização do percurso em detrimento do local de chegada. É difícil não comentar a onipresença da narração em off, lânguida e sussurrada, quando as vozes femininas pensam seus corpos e espalham poesias pela banda sonora. “Nessa época, ela corria muito”. “Ela nem se dá conta que a minha ascensão já começou”. “Esse lugar virou uma metáfora do meu corpo”. “Eu gostaria que fossem os meus órgãos flutuando, sem peso, para sempre”. Até violentos atos policiais contra mulheres, projetados em retratos da ditadura, passam pelo tratamento etéreo: “Entre os gritos, o terror e as bombas, essa mulher tem medo”. A violência nunca foi tão suave.
Devido à presença de Petra Costa na produção, as comparações com Democracia em Vertigem (2019) — do qual Passoni foi co-roteirista — e Elena (2012) soam inevitáveis. Muito se falou a respeito dessa voz débil, sensual e onipresente, insistindo em remeter os problemas do mundo a um nível profundamente íntimo, como se a sociedade fosse medida apenas pelo impacto profundo no “eu” — no ego, enfim. “Eu e a democracia temos quase a mesma idade”, sugeria Petra Costa, numa frase que despertou amores e deboches em sua época. Entre delicadeza e egocentrismo, o recurso foi acusado, sobretudo, de machismo, pela dificuldade de críticos e espectadores em tolerar a voz de uma mulher dominando o discurso político.
Algumas vozes tentaram argumentar, sobre o filme de 2019, que o problema se encontraria no tom desfalecido, langoroso, ao invés da voz feminina em si. Os posicionamentos contrários à narração soaram como recusa a esta forma peculiar de poesia, vista como sinal de falta de potência e assertividade. Em outras palavras, seria criticado no filme um imaginário da feminilidade, de graça, exigindo do filme político uma brutalidade que Costa nunca visou oferecer. Pelo contrário, optou pela estética do sonho, do desfalecimento.
Talvez o recurso se justifique melhor em Êxtase, por abordar, neste caso, a ideia de um corpo anêmico e adoentado. No entanto, é difícil prestar atenção a outro elemento para além dessa dança entre a voz fraca e a imagem lavada, sem contraste; entre os tempos mortos e as reflexões entrecortadas por silêncios. Há câmeras lentas, desfoques, sobreposições e muitos outros recursos que se convencionou perceber como ternos, carinhosos. O filme oferece a estética da caixinha de música processada pelo filtro da videoarte.
O resultado agradará ou desagradará, em igual medida, segundo a adesão do espectador a esta proposta extrema de mise en scène. Passoni possui confiança nos recursos empregados, e limita-se a multiplicar as sensualidades e sussurros da primeira à última cena, preservando a dissociação som-imagem, o aspecto confessional, as relações poéticas entre a natureza humana e aquela das plantas e do céu. Não existe uma única cena mais forte que as demais, uma proposta de guinada no ritmo, de textura ou desenvolvimento da linguagem. Muitas cenas poderiam ser reordenadas em ordens distintas, sem prejudicar o conteúdo final — aqui, a forma coincide com a mensagem.
No entanto, a evocação flutuante de temas e sensações soa pouco apropriada para dialogar com a política e a arquitetura de Brasília, quando o longa-metragem encontra seus instantes menos inspirados. A aproximação resulta fortuita, forçada demais pela montagem. Êxtase obtém mais sucesso na criação de uma atmosfera particular, de um estilo próprio e autoconfiante, do que na reflexão dispersa acerca das relações entre indivíduo e sociedade, entre o corpo e a cidade. Paira uma viagem lúdica pela psicologia da garota anoréxica, cujos sentimentos e razões comportam mais facetas do que o senso comum gostaria de admitir. Neste convite à quebra de preconceitos reside o melhor aspecto da experiência.