Há algo errado na classe média na Palestina contemporânea. Não estamos falando de guerras e eventos explícitos, exteriores, espetaculares, e sim uma espécie de melancolia generalizada, uma sensação de não-pertencimento constante. Os problemas parecem trabalhosos e cansativos a resolver, então, deixa-se que corram livres, que cresçam ou desapareçam por conta própria. Paira um senso de estagnação muito bem desenhado pela diretora Maha Haj.
Assim, Ola (Anat Hadid) percebe a depressão profunda do marido, Waleed (Amer Hlehel), que passa os dias em casa, supostamente escrevendo um livro cujas páginas permanecem em branco. Entretanto, ela está ocupada, tem mais o que fazer, e apenas torce para que a situação do homem se resolva. O filho do casal manifesta dores de barriga constantes, ainda que os médicos jamais descubram a origem do desconforto — os exames clínicos estão normais. A filha mais velha se sente negligenciada. Na casa dos avós, a umidade toma conta das paredes, mas consertar seria caro, faria bagunça, seria barulhento. Deixa assim mesmo.
Febre do Mediterrâneo (2022) se debruça sobre uma sociedade depressiva, que escolhe fechar os olhos a dilemas estruturais para se focar naquilo que lhe parece possível: o trabalho do dia a dia, a felicidade de encontrar uma vaga de garagem perto de casa, a briga sobre utilizar o celular durante as refeições ou não. A cineasta nunca despreza seus personagens, nem tampouco os transforma em sintomas ou exemplos de uma causa (ao contrário de tratados americanos alarmistas como Homens, Mulheres e Filhos, 2014, por exemplo). Trata-se de indivíduos complexos, de motivações e moral dúbias, com os quais o espectador pode facilmente se identificar — ou suspender a identificação em seguida, de acordo com suas ações controversas.
Por isso, os protagonistas partem de configurações muito distintas, ainda que se encontrem com o decorrer da trama. Waleed, sujeito bonachão e passivo, que “odeia gente”, em suas palavras, fica incomodado com a presença do novo vizinho, Jalal (Ashraf Farah). Este último possui o porte atlético, escuta música alta, despreza os embates políticos e econômicos do país (“Por mim, você pode enfiar a Palestina no cu”) e vive cercado de amigos e festas. Aos poucos, percebemos que ambos ocultam um desespero, apenas manifestado de maneiras diferentes.
Os protagonistas não constituem opostos que se atraem, somente duas formas neuróticas e mesmo paranoicas de uma masculinidade fragilizada.
Eles não representam opostos que se atraem, somente duas formas neuróticas e mesmo paranoicas (no decorrer da história) de uma masculinidade fragilizada. São homens que passam os dias dentro de casa, enquanto as mulheres trabalham. Ambos são desprovidos de desejo sexual, perderam a condição de provedores, e estão longe de constituírem modelos de moralidade para os filhos. De certo modo, sentem-se estrangeiros no espaço doméstico, onde cozinham bolos e admiram pacificamente a paisagem através da janela.
A febre do Mediterrâneo, mencionada pelo título, serve de metáfora à percepção de coisas fora do lugar, visto que se trata de uma condição afetando diretamente os povos desta parte do globo. A suspeita da médica estrangeira soa como uma afronta ao pobre Waleed, que se recusa a aceitá-la. Aos olhos do protagonista, esta possibilidade se assemelha a decretar que ele sofre de Palestina, que sofre por ser palestino — característica inata que jamais será transformada. Há uma bela poesia amarga na associação entre aspectos médicos e estados psíquicos.
Isso se deve à habilidade da cineasta em abordar um tipo muito específico de humor do absurdo, de tom sutil, capaz de passar quase despercebido. Aqui, ri-se de desespero, de incompreensão. Como os conflitos não possuem consequência determinante, são esquecidos, varridos para debaixo do tapete. Assim, o espectador nunca vê a pintura do teto mofado, nem o acerto de contas com a professora pró-Israel. A negociação letal entre os protagonistas, no melhor estilo Pacto Sinistro (1951), seria o único elemento realmente definitivo, e mesmo seu desenlace é ocultado do público através de um longo black no clímax, quando a imagem se apaga. A mise en scène nos prepara a um acontecimento grave, mas insiste em retirar do espectador o gozo desta situação.
Assim, o drama de toques cômicos se assemelha a uma pequena piada interna e recorrente, que evita chegar ao desfecho, à punchline. A gravidade é rapidamente aliviada por uma nova piada (vide a sequência de abertura, com o cadáver, e a gag do vizinho na cena final); enquanto a possibilidade de leveza é logo encurtada pela chegada de elementos de tensão (os tiros na parede de casa, o desaparecimento momentâneo de um personagem). Os criadores trabalham na chave do curto-circuito, da tensão aprofundada e relaxada, de modo alternado. Há uma maestria na edição e no ritmo, algo raro para uma diretora pouco experiente.
Os dois atores se prestam muito bem ao jogo de espelhamentos e inversões. Amer Hlehel começa soturno até, ironicamente, revelar um inesperado despojamento conforme a situação se agrava. Seu rosto até esboça um sorriso diante do caos. Ashraf Farah constrói um corpo malandro, uma fala sedutora, até perder a expressão jovial e se tornar mais rígido à medida que compreende as intenções do vizinho. O choque constante entre ambos, que ocupam a quase integralidade das cenas, está logicamente fadado à tragédia: é preciso que um deles seja eliminado para o que o outro continue a existir.
Cria-se uma metáfora singela da guerra neste embate entre o sujeito pró-Palestina e o amigo anti-Palestina, ou talvez entre o homem frágil que sonha em defender a pátria, e o sujeito forte que não tem interesse nenhum em brigar por ela. Ambos estão deslocados de seus propósitos. É um prazer observar um retrato tão pungente da masculinidade frágil pelos olhos de uma mulher crítica e segura de seu posicionamento. Em certa medida, dialoga com o recente Ataque dos Cães (2021), de Jane Campion, nesta percepção de que homens provocados e questionados socialmente tendem a esconder uma tendência autodestrutiva. O destino para eles é pouco animador.