Uma mulher volta ao pequeno vilarejo do interior onde passou a infância. Ela vem da cidade, com uma mentalidade aberta e progressista. No entanto, reencontra o pensamento violento e conservador deste local onde o poder se concentra nas mãos de pequenas famílias ricas, auxiliadas por seus capangas. A jovem passa a ser ameaçada conforme investiga e descobre algumas verdades. Um incêndio criminoso serve de catalisador rumo ao clímax, representando a principal afronta política contra o sistema enraizado.
Esta premissa corresponde a Bacurau (2019), Fogaréu (2022) e Fim de Semana no Paraíso Selvagem (2022). O cinema brasileiro tem gostado de eleger como alter-ego a juventude feminina, contestadora e resiliente, revelando o poder corrompido nas pequenas cidades interioranas. Em muitos desses casos, a personagem pega carona com sujeitos perigosos, podendo ser atacada por isso. Ela sustenta conversas com sujeitos que a ameaçam com um sorriso nos rostos, em aparência de “normalidade democrática”. A única solução possível, em todos os casos, provém da destruição dos símbolos de poder via fogo.
A protagonista, desta vez, é Rejane (Ana Flávia Cavalcanti), médica legista que busca mais informações sobre o irmão, um exímio pescador cuja morte é atribuída a um improvável afogamento acidental. Pelo comportamento dos personagens, sejam eles ricos ou pobres, próximos ou distantes do falecido Rodrigo, torna-se evidente à heroína, e ao espectador, que a morte corresponderia, na verdade, a um homicídio. Trata-se de um local de total ausência das instituições: não adianta chamar a polícia, recorrer às igrejas, às escolas, a qualquer local de coletividade. Cada um reina por si mesmo, e os capangas que retiram pacificamente um cadáver nas areias da praia avisam que eles, e apenas eles, representam a autoridade na região.
A principal qualidade deste suspense se encontra no intenso trabalho de ambientação construído pelo diretor Severino e sua equipe. Eles combinam um aspecto naturalista (o cais à noite, os bares de bairros populares) com uma construção estetizante (as noites profundamente azuladas, as trilhas sonoras perturbadoras) para sugerir um cenário opressor, perigoso, ainda que nenhuma violência seja representada de fato em imagens. O principal crime ocorreu antes do início da trama, e Rodrigo, o herói ausente, nunca ganha fotos. Cabe ao espectador imaginar quem foi este homem.
O principal crime ocorreu antes do início da trama, e Rodrigo, o herói ausente, nunca ganha fotos. Fim de Semana no Paraíso Selvagem orquestra uma potente asfixia a céu aberto.
Fim de Semana no Paraíso Selvagem orquestra uma potente asfixia a céu aberto, por meio da geografia confusa das casas e ruas (difícil saber se Rejane está perto ou longe de casa quando caminha pela praia), da temporalidade diluída (quanto tempo se passa desde que voltou à cidade?), e dos objetivos imprecisos. A própria heroína se vê incapaz de determinar seus objetivos precisos nesta viagem, e o prazo para retornar. O início com um grande fogaréu, o tiro disparado num animal selvagem e conversas repletas de intimidação nos preparam para uma perturbadora agressão que nunca se concretiza nas cenas.
O elenco está muito afinado, e bem preparado para navegar entre tantas sugestões e ambiguidades. Ana Flávia Cavalcanti possui um olhar potente, de intenções variadas entre a ternura, o rancor, a dúvida. Eron Villar também navega com facilidade entre o amigo e o possível algoz, entre aquele que revela segredos ou fornece novas mentiras a Rejane. No entanto, a atuação mais potente provém de Joana Medeiros, uma verdadeira força da natureza no trabalho com os diálogos, a voz e o corpo. Cada vez que ela dispara suas ameaças travestidas de amizade, torna-se uma antagonista de complexidade ímpar. É difícil desviar os olhos da atriz que tem roubado as cenas em todos seus filmes mais recentes (vide Medusa, 2021, e Sol Alegria, 2018).
Em contrapartida, tamanha sofisticação de linguagem e atuações se confronta a um roteiro curioso, pois explicativo, linear demais — algo inesperado para o autor do belíssimo, e hermético, Todas as Cores da Noite (2015). A estrutura se assemelha a um documentário ficcionalizado, visto que Rejane se converte em entrevistadora dos habitantes. Em cada cena, encontra um novo morador que lhe conta de Rodrigo, e explica o funcionamento perverso das estruturas locais. Os diálogos chegam a ser didáticos até demais, sobretudo aqueles entregues a Zezé Motta. “Rodrigo, aquele rapaz que estava sempre escondendo alguma coisa”, descrevem adiante. Algo nestas falas soa um tanto posado, pouco espontâneo.
Neste sentido, o texto busca uma forma de clareza, garantindo a compreensão de tantas metáforas e insinuações. É possível sugerir que, em seu segundo longa-metragem, Severino busca alcançar um público mais amplo do que aquele de sua obra inicial. Mesmo assim, evita se render aos clichês da investigação policial: jamais saberemos em detalhes o que houve a Rodrigo, e seria inútil esperar uma punição de bandidos para valorizar os esforços da protagonista. A narrativa, felizmente, caminha por um terreno mais complexo, e repleto de nuances, do que a oposição binária entre as partes.
Em contrapartida, teria sido interessante ao filme desenvolver o relacionamento com o filho, a quem são entregues os segmentos mais fracos do projeto (é conveniente demais que se afaste do grupo de amigos quando está sendo perseguido, e que encontre o ex-namorado do tio na mesma noite). A profissão de Rejane poderia surtir um efeito mais determinante na narrativa, ao passo que os papéis e gravações em celular seriam capazes de oferecer novos indícios de leitura ao espectador. Ora, a montagem esconde qualquer elemento passível de esclarecimento: a ideia é mergulhar o espectador num labirinto de sensações, e deixá-lo com tantas perguntas, ao final, quanto tinha no início.
Sobretudo, Rodrigo poderia ganhar sugestões mais vivas, sensoriais, metafóricas, em especial da voz do homem que o amava. Até o trecho do slam, belíssimo em fotografia e texto, soa deslocado do conjunto. Fim de Semana no Paraíso Selvagem se encerra como uma obra que talvez tenha combinado conceitos e escolhas em excesso, com dificuldade de articular tantas vertentes na montagem. No entanto, o que lhe falta em coesão não retira o valor de um suspense forte, marcante, capaz de ressoar no espectador durante muito tempo após a sessão. Em meio a um festival com mais de duzentos filmes, como a Mostra de São Paulo, a capacidade de ser memorável não é pouca coisa.