Fotofobia (2023)

A nova comunidade

título original (ano)
Photophobia (2023)
país
Eslováquia, República Tcheca, Ucrânia
linguagem
Documentário
duração
71 minutos
direção
Pavol Pekarčík, Ivan Ostrochovský
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Bombas explodem lá fora. Três homens passam rapidamente pelas ruas, em decorrência do barulho, mas sem expressar surpresa pelo ocorrido. Aqui, os estrondos se tornam um inconveniente, um perigo que exige precauções tal qual uma violência urbana ordinária. No entanto, foram incorporados ao cotidiano dos habitantes ucranianos, anos após os primeiros ataques russos. Existiria violência maior do que considerar a agressão de uma guerra algo “normal”?

A cena inicial deste documentário sintetiza a abordagem adotada ao longo de todo o projeto. Os cineastas Pavol Pekarčík e Ivan Ostrochovský trabalham com planos fixos, posados e longos, observando a guerra através do impacto direto na vida dos cidadãos. Nunca se questiona a respeito das origens do confronto, sua evolução sociopolítica, as negociações com outros países. Eles se preocupam somente com o capital humano e o desgaste psicológico da guerra, ao invés daquele de ordem material e física.

Logo, abandona-se o tradicional teor de urgência e de denúncia, habituais em retratos de grandes guerras (sobretudo, aquelas em andamento). Fotofobia oferece tempo de respiro, poesia, e mesmo humor e leveza. Ao invés de revelar o confronto “como ele realmente é”, assume a vocação de um olhar empático e parcial, em estrutura metonímica. O roteiro se volta ao abrigo subterrâneo em um metrô de Kharkiv, destinado a representar a crise humanitária em sua totalidade. Neste espaço, onde centenas de pessoas se abrigam, o filme elege uma família como protagonista. Dentro dela, privilegia o olhar do filho pequeno.

Há vida na Ucrânia durante os bombardeios, repetem as imagens. Há famílias, música, amizades, namoros, comunidades, crianças brincando.

A direção estabelece, em consequência, um foco e uma prioridade. A câmera evita tratar estes indivíduos enquanto massa indistinta de anônimos. Ao invés de apelar à piedade por aqueles em contexto de precariedade, prefere solicitar nossa identificação ao revelar sua humanidade. Os autores estão menos preocupados em contabilizar as perdas humanas e materiais destas pessoas do que em registrar o dia a dia no metrô fechado. O que comem, como se divertem, onde dormem, onde tomam banho? Que tipo de interações ocorrem ali? Como fazem com os animais de estimação?

Valorizam-se os procedimentos, até para evitar a impressão de caos ou desorganização. Descobrimos que existe um cadastro específico aos familiares refugiados no metrô. As pessoas são revistadas, acompanhadas, recebendo então alimentos e auxílio médico em horários específicos. Têm acesso a Internet e telefone, através dos quais se comunicam com familiares, e atualizam-se a respeito de novos ataques russos. Racionam provisões, separam-se em alas. Desenha-se uma nova comunidade, ainda que provisória.

O documentário transmite o absurdo da guerra através destes espaços ressignificados em tempos de improviso. O humor decorre da conversão de trilhos, plataformas e saguões em casas, ruas, centros comunitários. As crianças correm pelos trilhos do metrô, e dormem nos bancos do vagão desativado. Os corredores e espaços de conexão se tornam palco para as crianças correrem, ou para os cachorros passearem. O aspecto distópico, e quase pós-apocalíptico, produz o estranhamento necessário ao espectador.

Em outras palavras, a dinâmica dos meses passados sem ver o sol (o que justifica o título) é registrada com a devida distância. Isso permite a intromissão de trilha sonora constante (facilitada por Cowboy, um cantor ucraniano de música country que se apresenta às câmeras), além de um elemento fantástico motivado pelas orelhinhas de pelúcia de uma criança. O fato que tenham aulas à distância, pelo computador, ou que dois idosos flertem em pleno refúgio nos revela a capacidade de adaptação, mas também a necessidade de contato humano. A guerra não é feita apenas de bombardeios: ela também está repleta de espera, de tédio, de incerteza. Sobre os colchões jogados no chão, as pessoas olham para as telas dos celulares, ou admiram um ponto distante qualquer, desoladas.

Fotofobia recorre a diversos instantes de ficcionalização, quando o controle ou intervenção sobre o meio remetem a um projeto roteirizado. Com Nikita, o protagonista mirim, a câmera se dispõe a fazer planos giratórios em torno do rosto. Depois, cola-se ao corpo do menino quando ele busca água. Mais tarde, efetua o tradicional plano e contraplano da ficção, de modo a revelar algo que o garoto escuta enquanto os pais sussurram, num local distante.

Pekarčík e Ostrochovský nunca se prestam a um cinema “de observação”, do tipo que se contenta com aquilo que os personagens possam oferecer, sem condicionamento nem escolha. Preferem intervir no meio, aproximando a câmera das expressões faciais. Mesmo assim, devido à intimidade evidente com a família principal, produzem a impressão de passar despercebida, ou de produzir mudanças mínimas nas ações. Logo, este núcleo nunca aparenta atuar para as câmeras, quando poderia apresentar uma versão mais positiva ou vitimizada de si próprio. 

Acostumados à intromissão dos repórteres, os refugiados não se incomodam com a presença de uma equipe. Fotofobia evita, desta maneira, a representação clássica da guerra pela sucessão de escombros e cadáveres. Ainda há vida na Ucrânia durante os bombardeios, repetem as imagens. Há famílias, música, amizades, namoros, comunidades, crianças brincando, casais. Não se solicita que o espectador nutra piedade pelos residentes do metrô, nem os enxergue como heróis ou mártires. Pelo contrário, na aparente banalidade destes dias de exceção, reside um belo humanismo cinematográfico.

Fotofobia (2023)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.