Rose (Fiona Shaw) possui uma doença rara. A senhora passa os dias numa cadeira de rodas, incapaz de andar, embora os médicos não encontrem razões fisiológicas para tal. Sua filha, Sofia (Emma Mackey), também possui traumas mal resolvidos, seja em virtude da homossexualidade, seja pelo abandono do pai, quando tinha apenas quatro anos. Quando as duas fazem uma viagem à Espanha, para um tratamento experimental da mãe, alguns destes conflitos serão desbloqueados.
Partindo do livro e do roteiro de Deborah Levy, Hot Milk pertence ao subgênero dos “filmes de férias”, nos quais personagens distantes de seus cotidianos se permitem experiências que não teriam em suas cidades de origem. Isso implica em amores passageiros, abertura a drogas, festas, comidas, amizades. Existe uma noção da viagem enquanto parêntese da realidade: o que acontece em Almería, permanece em Almería. Portanto, as protagonistas encaram o deslocamento menos como uma possibilidade de descoberta do outro do que de si mesmas.
A sexualidade atravessa a narrativa, de forma sonhada, às vezes absurda, e abertamente cômica. Mãe e filha testemunham, juntas, a briga de um casal na praia, e a senhora se estima no direito de alfinetar o namorado por suas atitudes. Uma mulher de branco, cavalgando na areia, literalmente vem até Sofia para conversar com ela e iniciar um romance. Adiante, a jovem também decide se encontrar com o guarda-vidas da praia. A inconsequência dita os rumos de uma ciranda amorosa fluida, improvável. Pessoas batem à janela de Sofia, ou a provocam enquanto passeia na praia.
Rebecca Lenkiewicz promove uma atmosfera lisérgica, fabular. É difícil determinar o que realmente acontece, e o que pertence ao domínio dos desejos e ilusões destas mulheres.
Assim, interessa uma mistura despojada, quase fetichista, do público e do privado. Durante a viagem, os dois se fundem: a mãe precisa confessar seu passado doloroso ao médico, que insiste na tese da doença psicossomática. Ela o faz na frente da filha e da assistente do Dr. Gomez (Vincent Perez) que, por acaso, também é filha deste. Sofia flerta igualmente com esta jovem. Na casa do vizinho, um cachorro late sem parar, irritando as duas e levando a um confronto com faca em punho. Não existe mais separação entre o eu e o outro, entre espaço individual e espaço coletivo.
Em seu primeiro longa-metragem na direção, a experiente roteirista Rebecca Lenkiewicz promove uma atmosfera lisérgica, fabular. É difícil determinar o que realmente acontece, e o que pertence ao domínio dos desejos e ilusões destas mulheres. Quando Sofia se queima com águas vivas na praia (que formam uma espécie de tatuagem de ondas no braço), ela decide voltar ao mar, apenas para se queimar de novo. Os homens na vida de Ingrid (Vicky Krieps) — a parceira errática de viagem — surgem e desaparecem sem explicação. Os animais (cachorros, águas vivas, cobras) significam fascinação e perigo.
Logo, pode-se falar em uma narrativa mais simbólica do que realista, ou mesmo naturalista. A montagem salta entre ações de modo a embaralhar a noção de tempo e de espaço. A mãe, completamente dependente da filha para tomar um copo d’água, é deixada sozinha durante dias inteiros. A escolha de ângulos e a montagem faz com que não se saiba ao certo quem observa quem, por quanto tempo. Sofia está frequentemente absorta, e sua perda de referências também se torna a nossa. O forte sol da Espanha contribui à atmosfera um tanto febril, delirante.
As atrizes se entregam a um jogo de regras indefinidas. Fiona Shaw está ora muito naturalista, em plena consciência de suas decisões, apenas para se abandonar a provocações infantis adiante (a marca da água, a lista de inimigos). Emma Mackey, atriz expressiva, imprime tiques de irritação e desconforto face a uma Vicky Krieps etérea como de costume, tal qual uma figura mitológica que pode, ou não, ter existido em sua vida estes dias todos. A cineasta promove uma articulação de conflitos por meio da diferença: quando a filha endurece a conduta, a mãe se torna a verdadeira garota precisando de cuidados; quando a mulher mais velha se impõe, a filha se cala e consente. Uma valsa, enfim.
É verdade que nem todos estes símbolos se concretizam a contento. No terço final, quando as simbologias retornam (o cachorro, o suposto caminhar da mãe, Ingrid a cavalo), Hot Milk desperta a impressão de girar em círculos, sem saber ao certo para onde levar estas mulheres fantasmáticas. Por mais que se aprecie a atmosfera de claustrofobia ao ar livre — ambas parecem presas, indefinidamente, àquele espaço —, o roteiro não as projeta rumo qualquer situação extrema, seja de sexualidade ou de perigo. Em outras palavras, a narrativa soa como uma gradação, intensificando os mesmos elementos do início, rumo a uma prenunciada explosão que nunca chega de fato.
O segredo, anunciado inúmeras vezes, será enfim revelado sem provocar o alarde esperado, nem surtar efeito determinante no resto da narrativa. Resta a impressão de que a diretora se sai muito melhor no delírio (os sussurros à noite, os pesadelos, a queimadura) do que na conclusão verossímil dos conflitos pós-traumáticos. Ela prefere se emaranhar no turbilhão de símbolos a desatá-los e oferecer um destino plausível às duas. A obra empolga mais enquanto proposta do que execução, ou melhor, cativa mais pela criação de atmosfera do que pelo modesto humanismo por trás desta ambientação sensual.