Neste longa-metragem, Terceiro Mundo é um homem, interpretado pelo próprio diretor, Renan Rovida. Este andarilho dorme pelas ruas junto ao cachorro caramelo, enquanto procura formas de sobrevivência. Encontra, em suas errâncias pelo centro de São Paulo, a Aparecida, a quem entrega objetos em busca de um milagre, e Brasil, homem com quem desenvolve um relacionamento fortuito. Ele enfrenta a polícia, os trens avançando em sua direção, as fábricas automobilísticas fechadas, onde trabalhou um dia.
Como se percebe, Idade da Pedra parte de metáforas ostensivas, explícitas e bastante pretensiosas — o que não constitui, em si, um mérito, nem demérito. O próprio título evoca o clássico A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha, outro cineasta pouco afeito às sutilezas. O autor faz do estranhamento um objetivo, caso em que a forma equivale ao conteúdo. Esta seria menos uma obra portadora de mensagens e debates do que uma provocação aos sentidos, em vertente conceitual.
A decisão do diretor de se colocar no papel do protagonista — um homem em situação de rua, em especial — desperta certo receio. Ele teria o lugar de fala adequado para representar esta comunidade? Não estaria romantizando a marginalidade, ou almejando uma posição vaidosa ao tomar para si o papel do sujeito sofredor, capaz de encarnar o terceiro mundo inteiro? Felizmente, Rovida evita a composição egocêntrica, e foge à tentação de propagandear seus dotes dramáticos. Ele faz do herói um sujeito-performance, um corpo disponível e entregue. Sua atuação fica muito distante da criação convencional.
O cineasta responde unicamente à lógica da poesia. Felizmente, a vertente libertária jamais confunde ludicidade com ingenuidade, nem com condescendência.
Tal disposição se justifica pela construção de uma obra contrária à narratividade padrão. As cenas se orquestram mediante uma lógica livre, de fluxo, em oposição aos mecanismos cronologia e de causa e consequência. Diversas sequências, inclusive, retornam ao ponto de onde pararam, muitos minutos mais tarde, gerando certa sensação de circularidade, ou de tempos paralelos. Os devaneios se assemelham a um sonho, uma realidade suspensa. Rovida aposta na linguagem etérea para abordar algo tão concreto quanto a vida nas ruas.
O cineasta responde unicamente à lógica da poesia. Terceiro Mundo é acompanhado por um coral feminino evocando as tragédias gregas, e comentando seus sentimentos em letra e melodia. Na introdução — o melhor momento do filme inteiro, de uma delicadeza ímpar —, dois profissionais da prefeitura recolhem o lixo da cidade, conforme fabulam a respeito dos objetos encontrados no chão. Um trompete dá origem à interação musical de aparência tão improvisada (em termos narrativos) quanto controlada (nos aspectos estéticos).
Felizmente, a vertente libertária jamais confunde ludicidade com ingenuidade, nem com condescendência. O espectador nunca é convidado a nutrir piedade pelos protagonistas pobres, nem torcer por suas conquistas futuras. Pelo contrário, eles aparentam existir somente no tempo presente. O roteiro troca a ilustração da fome pela indicação de que nosso herói sonha em reencontrar o pai distante — esta é a informação que realmente interessa à narrativa. Logo, a identificação por parte do espectador ocorre não pelo acúmulo de caraterísticas corriqueiras aos personagens, mas pelo esvaziamento total de psicologia, até que as figuras se transformam em quadros brancos onde o espectador pode projetar as pulsões que lhe convier.
Idade da Pedra também surpreende por materializar a opressão sem olhar para o outro lado, ou seja, aquele das classes abastadas, dos patrões, dos dirigentes. A troca com um policial resulta numa cena particularmente forte, ainda que rara no longa-metragem. De modo geral, os indivíduos empobrecidos dialogam apenas entre si próprios, numa São Paulo de ruas esvaziadas e afetos esporádicos. Após Pão e Gente (2022), o autor segue na busca por retratos urbanos de uma pobreza lúdica, evitando filmar a burguesia que se opõe aos marginais. Talvez sejamos nós, espectadores de classe-média, a presença necessária diante da imagem da alteridade. Por esta perspectiva jornada se completaria em nossos olhares tão distintos daquela realidade.
Para muitos espectadores, é possível que o projeto se destaque sobretudo pelas cenas musicais e pelas performances junto à catedral da Sé, ou no interior de uma sala de cinema. O protagonista de poucas palavras se choca com os ritmos de uma cidade que se canta, se permite criar durante a madrugada, quando poucos olhares a vigiam. As belas vozes do coral, os vestidos cuidadosamente escolhidos das mulheres, e o distanciamento da artista que declama sua sabedoria a-quem-desejar-possa (“E assim termina a luta / Quem vence o herói é sempre a puta”) coroam a impressão de uma obra ao mesmo tempo profundamente cinematográfica, e bastante teatral.
No final, a luta solitária contra o trem que aceleraf em sua direção poderia tornar Terceiro Mundo um novo Dom Quixote, combatendo seus moinhos de vento na São Paulo contemporânea. Ora, o homem não está louco, nem acredita batalhar em nome de uma causa importante. Ele não constitui o herói no sentido virtuoso do termo, apenas um representante de si mesmo.
Na pequeneza deste escopo, e na simplicidade das construções cênicas, o resultado encontra suas principais qualidades. O projeto sonha alto e filma pequeno, como convém às propostas singelas (em termos de produção, não de conceitos). Ao final da sessão, pode despertar o maravilhamento do espectador graças às cenas dispersas, que talvez não se completem de maneira muito coesa, porém tampouco tenham esta pretensão. Rovida elabora um projeto bastante consciente de seu porte e sua linguagem, ou seja, das potencialidades de um mergulho experimental.