Idade da Pedra (2024)

Poesia em situação de rua

título original (ano)
Idade da Pedra (2024)
país
Brasil
linguagem
Experimental
duração
70 minutos
direção
Renan Rovida
elenco
Renan Rovida, Carlota Joaquina, Carlos Francisco, Carlos Escher, Talita de Jesus, Alexandre de Sena
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

Neste longa-metragem, Terceiro Mundo é um homem, interpretado pelo próprio diretor, Renan Rovida. Este andarilho dorme pelas ruas junto ao cachorro caramelo, enquanto procura formas de sobrevivência. Encontra, em suas errâncias pelo centro de São Paulo, a Aparecida, a quem entrega objetos em busca de um milagre, e Brasil, homem com quem desenvolve um relacionamento fortuito. Ele enfrenta a polícia, os trens avançando em sua direção, as fábricas automobilísticas fechadas, onde trabalhou um dia.

Como se percebe, Idade da Pedra parte de metáforas ostensivas, explícitas e bastante pretensiosas — o que não constitui, em si, um mérito, nem demérito. O próprio título evoca o clássico A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha, outro cineasta pouco afeito às sutilezas. O autor faz do estranhamento um objetivo, caso em que a forma equivale ao conteúdo. Esta seria menos uma obra portadora de mensagens e debates do que uma provocação aos sentidos, em vertente conceitual.

A decisão do diretor de se colocar no papel do protagonista — um homem em situação de rua, em especial — desperta certo receio. Ele teria o lugar de fala adequado para representar esta comunidade? Não estaria romantizando a marginalidade, ou almejando uma posição vaidosa ao tomar para si o papel do sujeito sofredor, capaz de encarnar o terceiro mundo inteiro? Felizmente, Rovida evita a composição egocêntrica, e foge à tentação de propagandear seus dotes dramáticos. Ele faz do herói um sujeito-performance, um corpo disponível e entregue. Sua atuação fica muito distante da criação convencional.

O cineasta responde unicamente à lógica da poesia. Felizmente, a vertente libertária jamais confunde ludicidade com ingenuidade, nem com condescendência.

Tal disposição se justifica pela construção de uma obra contrária à narratividade padrão. As cenas se orquestram mediante uma lógica livre, de fluxo, em oposição aos mecanismos cronologia e de causa e consequência. Diversas sequências, inclusive, retornam ao ponto de onde pararam, muitos minutos mais tarde, gerando certa sensação de circularidade, ou de tempos paralelos. Os devaneios se assemelham a um sonho, uma realidade suspensa. Rovida aposta na linguagem etérea para abordar algo tão concreto quanto a vida nas ruas.

O cineasta responde unicamente à lógica da poesia. Terceiro Mundo é acompanhado por um coral feminino evocando as tragédias gregas, e comentando seus sentimentos em letra e melodia. Na introdução — o melhor momento do filme inteiro, de uma delicadeza ímpar —, dois profissionais da prefeitura recolhem o lixo da cidade, conforme fabulam a respeito dos objetos encontrados no chão. Um trompete dá origem à interação musical de aparência tão improvisada (em termos narrativos) quanto controlada (nos aspectos estéticos). 

Felizmente, a vertente libertária jamais confunde ludicidade com ingenuidade, nem com condescendência. O espectador nunca é convidado a nutrir piedade pelos protagonistas pobres, nem torcer por suas conquistas futuras. Pelo contrário, eles aparentam existir somente no tempo presente. O roteiro troca a ilustração da fome pela indicação de que nosso herói sonha em reencontrar o pai distante — esta é a informação que realmente interessa à narrativa. Logo, a identificação por parte do espectador ocorre não pelo acúmulo de caraterísticas corriqueiras aos personagens, mas pelo esvaziamento total de psicologia, até que as figuras se transformam em quadros brancos onde o espectador pode projetar as pulsões que lhe convier.

Idade da Pedra também surpreende por materializar a opressão sem olhar para o outro lado, ou seja, aquele das classes abastadas, dos patrões, dos dirigentes. A troca com um policial resulta numa cena particularmente forte, ainda que rara no longa-metragem. De modo geral, os indivíduos empobrecidos dialogam apenas entre si próprios, numa São Paulo de ruas esvaziadas e afetos esporádicos. Após Pão e Gente (2022), o autor segue na busca por retratos urbanos de uma pobreza lúdica, evitando filmar a burguesia que se opõe aos marginais. Talvez sejamos nós, espectadores de classe-média, a presença necessária diante da imagem da alteridade. Por esta perspectiva jornada se completaria em nossos olhares tão distintos daquela realidade.

Para muitos espectadores, é possível que o projeto se destaque sobretudo pelas cenas musicais e pelas performances junto à catedral da Sé, ou no interior de uma sala de cinema. O protagonista de poucas palavras se choca com os ritmos de uma cidade que se canta, se permite criar durante a madrugada, quando poucos olhares a vigiam. As belas vozes do coral, os vestidos cuidadosamente escolhidos das mulheres, e o distanciamento da artista que declama sua sabedoria a-quem-desejar-possa (“E assim termina a luta / Quem vence o herói é sempre a puta”) coroam a impressão de uma obra ao mesmo tempo profundamente cinematográfica, e bastante teatral. 

No final, a luta solitária contra o trem que aceleraf em sua direção poderia tornar Terceiro Mundo um novo Dom Quixote, combatendo seus moinhos de vento na São Paulo contemporânea. Ora, o homem não está louco, nem acredita batalhar em nome de uma causa importante. Ele não constitui o herói no sentido virtuoso do termo, apenas um representante de si mesmo.

Na pequeneza deste escopo, e na simplicidade das construções cênicas, o resultado encontra suas principais qualidades. O projeto sonha alto e filma pequeno, como convém às propostas singelas (em termos de produção, não de conceitos). Ao final da sessão, pode despertar o maravilhamento do espectador graças às cenas dispersas, que talvez não se completem de maneira muito coesa, porém tampouco tenham esta pretensão. Rovida elabora um projeto bastante consciente de seu porte e sua linguagem, ou seja, das potencialidades de um mergulho experimental.  

Idade da Pedra (2024)
6
Nota 6/10

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