If I Had Legs I’d Kick You (2025)

A mulher que cuidava

título original (ano)
If I Had Legs I’d Kick You (2025)
país
Estados Unidos
gênero
Drama, Fantasia
duração
113 minutos
direção
Mary Bronstein
elenco
Rose Byrne, A$AP Rocky, Conan O’Brien, Danielle Macdonald, Ivy Wolk, Lark White, Daniel Zolghadri, Delaney Quinn
visto em
75º Festival de Berlim (2025)

Linda (Rose Byrne) precisa cuidar da filha pequena, que se recusa a comer devido a uma doença grave. Desde que o marido partiu numa viagem de dois meses, ela tem que garantir sozinha o ganho de peso da menina. Em paralelo, deve cuidar do apartamento da família, onde um gigantesco buraco se abriu no teto, liberando um fluxo de água, proveniente da unidade acima, suficiente para alagar o local. Na condição de psicóloga, encarrega-se de assistir os pacientes — sobretudo uma jovem mãe com sintomas de depressão pós-parto. Ela deve se atentar às notas da pequena na escola. E acionar o seguro para a casa. E limpar o apartamento. E pagar o próprio terapeuta.

If I Had Legs I’d Kick You procura uma linguagem capaz de abarcar o profundo estado de angústia dessa personagem. Trata-se de uma mulher ativa, responsável, organizada, cuja sobrecarga de tarefas a leva à exaustão. Por isso, exagera no vinho, na pizza e em outras comidas pouco saudáveis. Ela passa a agredir seu psicólogo (Conan O’Brien), gritar com o guarda do estacionamento, e destratar violentamente o funcionário do hotel onde se hospeda (interpretado por A$AP Rocky), além de recusar por completo os conselhos de uma médica (a própria cineasta, Mary Bronstein) que parece considerá-la uma mãe ruim.

A direção se concentra obsessivamente no rosto da atriz principal. O diretor de fotografia Christopher Messina fecha o enquadramento, sempre que possível, na expressão da mulher, respirando fundo e tentando não explodir a cada nova cobrança ou imprevisto (uma paciente abandona o bebê em seu consultório, por exemplo). Finalmente, Rose Byrne finalmente ganha um papel à altura de seu talento, podendo demonstrar a variedade necessária à mulher que disfarça o desespero sob a aura de uma normalidade socialmente aceitável. Por esse papel, deve despontar como favorita à próxima temporada de premiações.

O drama pode representar uma experiência dura, incômoda, e consciente de sê-lo. Entretanto, poucos filmes representam de maneira tão incisiva a psique de uma pessoa esgotada.

Em consequência, o foco na mãe implica na desatenção às pessoas ao redor. É curiosa a escolha por não mostrar o rosto da filha doente, resumindo-a a partes do corpo — os pés balançando enquanto se senta no vaso sanitário, as pequenas mãos, alguns fios de cabelo nos cantos do enquadramento. De resto, a menina se limita a uma voz constante, não particularmente chorosa nem reclamona, porém exigindo cuidados ininterruptos. O marido (Christian Slater), em estilo semelhante, se reduz a uma voz impaciente ao telefone, cobrando da esposa os cuidados que ele tampouco dispensa à filha. 

O próprio aparelho imagético sobrecarrega a função da atriz, que precisa representar a mãe, sem ter uma filha junto de si no enquadramento, e a esposa, sem a presença do marido. Esta claustrofobia das imagens e dos sons ajuda a criar a impressão de desequilíbrio e injustiça com esta mulher. Não por acaso, as pessoas não-relacionadas à vida privada de Linda são enquadradas normalmente, tentando auxiliá-la. No entanto, é impossível ajudar alguém incapaz de receber ajuda, ou de admitir sua inabilidade em gerenciar tarefas que a sociedade apresenta como meras obrigações femininas (alimentar a filha, cuidar da casa, trabalhar). 

Enquanto isso, recursos de fantasia irrompem discretamente o real para representar o absurdo do acúmulo de funções. Os destroços no teto são equiparados ao buraco no estômago da menininha, de onde sai um tubo gigantesco, e também à pizza nojenta que ambas comem no jantar. Galáxias e espectros pairam por este buraco negro, prestes a engolir Linda, enquanto uma luz azulada, típica de abduções alienígenas, mira seu corpo. Esta abertura soa como um olhar de julgamento, observando-a e vigiando-a — não por acaso, a heroína não consegue atura a própria casa, e se muda para o hotel. A interferência do mundo externo chega até ao espaço do lar.

Além disso, o terror ameaça dar as caras, com indícios de que a selvageria seria a única saída possível para tal impasse — Linda, a filha, o marido, a paciente ou algum outro personagem precisaria ser morto, num sacrifício visando o reestabelecimento do equilíbrio das coisas. Uma maneira de eliminar o excesso, digamos. A morte de um animal, a extração do tubo e as gosmas vazando do buraco nos aproximam do horror sobrenatural. A própria grafia do título e dos letreiros finais, em letras vermelhas ameaçadoras, faz clara referência aos slashers e filmes de possessão demoníaca.

Este arsenal serve a transmitir no espectador um sentimento de acúmulo semelhante àquele experimentado pela mãe. If I Had Legs I’d Kick You (belo título original, significando “Se eu tivesse pernas, te chutaria”) promove uma estética da ansiedade, acelerando as cenas, oprimindo a personagem, sobrepondo sons (a ligação telefônica enquanto a filha fala) e imagens (via repetição, com as gags do controlador do estacionamento, as garrafas de vinho recusadas, os conselhos da médica). Teria sido simples para Rose Byrne chorar e se desesperar a cada cena. Ainda mais complexo é tentar manter a compostura diante de uma situação limítrofe e crônica.

“I’l be better. I promise”. A frase de Linda, em inglês, possui duplo sentido. O primeiro, “Eu vou ficar melhor, prometo”, significa o comprometimento com sua melhoria pessoal — sua saúde, por exemplo. O segundo, “Eu serei melhor, prometo”, implica na declaração de que se tornará uma mãe, esposa e trabalhadora ainda mais eficaz. Não sabemos, com esta frase-marco, se ela demonstra clemência consigo, ou uma cobrança ainda maior. O longa-metragem consegue filmar de maneira asfixiante e hipnótica (não existe um único instante de relaxamento, do início ao fim), a sensação de perda de si. Não existe mais diferença entre o eu e o outro, entre a privacidade e a vida pública, entre meu espaço e o espaço alheio. 

De certo modo, o projeto estabelece uma bela dupla com A Substância, enquanto retratos das pressões insanas atribuídas às mulheres, até que sejam aniquiladas em corpo e mente. Serão reduzidas a uma gosma, no caso do terror de Coralie Fargeat, e a uma presença ausente, esvaziada de sentidos, no filme de Mary Bronstein. Sem surpresa, as obras mais potentes acerca da condição feminina surgem das novas diretoras, enfim ganhando acesso à câmera e aos meios de criação, para contarem suas histórias originais. Este projeto pode representar uma experiência dura, incômoda, e consciente de sê-lo. Entretanto, poucos dramas representam de maneira tão incisiva a psique de uma pessoa esgotada.

If I Had Legs I’d Kick You (2025)
10
Nota 10/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.