Na Água (2023)

O novo quadro do pintor

título original (ano)
mul-an-e-seo (2023)
país
Coreia do Sul
Gênero
Drama, Comédia
duração
61 minutos
direção
Hong Sang-soo
elenco
Shin Seokho, Ha Seongguk, Kim Seungyun
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Hong Sang-soo ataca novamente. O diretor sul-coreano chegou a tal status de autoria que cada nova produção desperta menos discussões acerca de suas características internas do que sobre o próprio criador. Os críticos comparam as obras entre si, destacam os traços recorrentes (havendo muitos à disposição), os mínimos indícios de mudança, a coesão do conjunto. 

A maioria se felicita de ver um filme “tipicamente sang-sooiano”, sinal de que o criador se tornou a própria criação, e seu próprio parâmetro de qualidade. Duvido que alguém tenha entrado na sessão de In Water empolgado com a sinopse, as fotos de divulgação ou o conflito amoroso entre os personagens. Fomos todos ver “o novo Hong Sang-soo”.

Para o bem ou para o mal, o resultado é muito próximo do que se esperaria dele. O conforto e a previsibilidade das marcas autorais se fazem presentes. Estão garantidas as conversas banais entre amigos ao redor da mesa, tomando soju; a sugestão de um amor romântico meio patético, pois encenado; as longas cenas em plano fixo; as perambulações na cidade. 

A praia, cenário de predileção, ocupa lugar importante na trama a respeito de um jovem que decide fazer um filme caseiro. Ele reúne dois colegas para o elenco, e promete que filmarão em breve. Não há roteiro pronto, e os parceiros desconhecem a premissa. “Começamos a filmar hoje?”, perguntam, ansiosos. “Não, acho que não. Vamos passear”, responde o pretenso diretor, em busca de inspiração.

Assim, o filme-dentro-do-filme se elabora enquanto já está sendo gravado, ao invés de previamente. O ato de filmar se torna menos um objetivo final do que um processo, um prazer em si. “Filmo para descobrir o que estou filmando”, poderia argumentar Seoung-mo (Shin Seokho). Graças à pequena conversa com uma modesta catadora de lixo, decide transformar o episódio no motor do singelo curta-metragem.

Sem a definição dos rostos, diminui a precisão das atuações, a busca pela compreensão e identificação dos cenários e ações. O diretor retira mais uma peça de seu castelo de cartas cinematográfico.

A temática de jovens diretores que decidem fazer um filme, apesar de ignorarem a linguagem cinematográfica, tem se tornado a nova obsessão de Hong Sang-soo. O cineasta havia utilizado praticamente a mesma premissa em O Filme da Escritora (2022), e trabalhado com material semelhante em Encontros (2021), através do personagem que deseja escrever, sem saber como.

As vantagens desta premissa são evidentes: o autor pode, assim, questionar seu processo criativo, fazendo do herói um alter-ego. Sang-soo, diretor experiente e com amplo domínio da linguagem cinematográfica, pode brincar de não saber fazer cinema, de limitar os recursos, de jogar com os limites da profundidade de campo, da atuação, da mise en scène

Assim, ele volta a enxergar o cinema enquanto prazer e diversão entre amigos, desprezando o grande aparato técnico, as permissões, os produtores, etc. O grande diretor busca o prazer nostálgico de voltar a ser pequeno, caseiro, improvisado, ágil e rápido. Enquanto seus jovens e imaturos personagens sonham em se tornar profissionais, o profissional sonha em se tornar amador novamente.

A iniciativa possui seus riscos. O sul-coreano é cada vez mais acusado de fazer “sempre o mesmo filme”, com menor investimento pessoal, desprovido de riscos e ambições reais. Ele arrisca repetir a trajetória do japonês Takeshi Kitano que, após obras excelentes e premiadas, sentia pressão imensa para repetir os sucessos. Entrou em crise, dirigiu diversos filmes fracos sobre cineastas em pane criativa, até parar de dirigir. 

Pelo menos, Sang-soo segue numa busca filosófica pelo mínimo denominador do cinema. Aos poucos, retira elementos considerados essenciais para descobrir o que restará ao filme, e se o resultado se sustenta de maneira autônoma. Assim, foi diminuindo o condicionamento dos atores, cada vez mais espontâneos em cena. Retirou o peso da direção de arte, esnobou a luz artificial, minimizou a importância de guinadas no roteiro, da psicologia dos personagens, da noção de finalidade.

Ao insistir em planos fixos, reduziu o conceito de decupagem (são os personagens que entram e saem de quadro para comporem “novos planos”). Ao limitar cada cena a um cenário e um enquadramento, limitou a exploração do espaço e a interação com o mesmo. Ao eleger um único tipo de letreiros, de artes gráficas, criou uma espécie de assinatura que possa usar sempre.

Em consequência, suas obras se tornam cada vez menores, mas também mais formulaicas (no sentido de uma fórmula própria, pessoal, não utilizada por terceiros), e seriais. Está fácil confundir as numerosas obras que se multiplicam em festivais, numa velocidade espantosa. Sang-soo filma menos, em termos de tempo, para filmar mais, em termos de quantidade e frequência. Há um gesto compulsivo neste procedimento, que algum biógrafo faria bem de explorar. 

In Water possui apenas 61 minutos, e uma quantidade de cenas que se contaria nos dedos de uma mão. Na maioria dos festivais, nem sequer seria considerado um longa-metragem. Ele remete a um exercício cinematográfico, uma provocação na arte de reduzir espaços, escopos e ousadias em busca de uma pureza e ingenuidade essenciais do cinema.

O maior diferencial — talvez o único —, de peso, encontra-se no foco e na nitidez. O diretor decide, desta vez, retirar a definição das imagens. Isso significa que Seoung-mo, Sang-guk e Nam-hee passeiam pela praia e conversam pela casa com o rosto desfocado, em imagem pixelizadas. Ela elogia uma flor amarela cujo contorno desconhecemos. Se está realmente contente, ou se possui dúvidas quanto ao filme prestes a ser realizado, não saberemos ao certo.

Esta escolha produz um efeito considerável. Sem a definição dos rostos, diminui a precisão das atuações, a busca pela compreensão e identificação dos cenários e ações. Os elementos mencionados pelos protagonistas precisam ser aludidos, intuídos, numa aliança de boa-fé com o espectador. O diretor retira mais uma peça de seu castelo de cartas cinematográfico, procurando qual pilar fará ruir a estrutura.

De fato, o projeto se sustenta sem a nitidez habitual. O desfoque suscita um humor inesperado, do tipo que o cineasta adora imprimir em suas histórias (sempre a comicidade da linguagem cinematográfica, jamais dos diálogos ou das ações). Descobrimos que o preciosismo exigido em termos de definição (sobretudo em tempos de streaming) não era tão necessário assim: o material humano é preservado, assim como a leveza, a fluidez, a coesão. 

In Water está longe de um projeto experimental no sentido estrito do termo. Ele tampouco poderia ser bem compreendido enquanto peça avulsa. Sang-soo se aproxima de um artista plástico explorando sua linguagem numa série de pinturas parceiras, que integram a mesma coleção, e deveriam ser apreciadas em conjunto. Seu material de trabalho é cada vez menos os atores e os conflitos, e mais a plasticidade da própria imagem. Enquanto a maioria dos criadores busca representar o mundo, Sang-soo o explora enquanto simples matéria-prima.

Na Água (2023)
6
Nota 6/10

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