Desde os anos 2010, o termo gaslighting corresponde ao fenômeno de desqualificar outra pessoa em função de sua debilidade mental ou estado psicológico. Aplicado majoritariamente às mulheres, ele consiste na sugestão de que suas ações ou percepções seriam menos confiáveis devido ao aspecto hormonal, emotivo, suscetível a mudanças. É comum sugerir que esposas e namoradas estão loucas, histéricas, paranoicas, inventando coisas. Mas quem sabe, caso medicadas, voltem a transparecer certa normalidade.
O nome decorre do filme À Meia Luz (1944, de título original Gaslight), porém se aplica a inúmeras histórias clássicas de Hollywood, desde O Bebê de Rosemary (1969) até A Troca (2008), que trazem a comum a maternidade enquanto motor de desvario das protagonistas. Enquanto elas perdem o contato com o real, os maridos constituem pilares de razão e comedimento, enfrentando traumas ou dores com pudor. Eles continuam trabalhando, mostrando-se indivíduos funcionais. Já as mulheres, pobrezinhas, seriam incapazes de tal controle emocional.
Para quem estiver buscando um exemplo mais recente de gaslighting, Instinto Materno serve a perfeição para ilustrar os comportamentos acima. Celine (Anne Hathaway) acaba de perder o filho pequeno num acidente doméstico. Ela se culpa pela suposta negligência ao garoto, que caiu de uma sacada. A vizinha e melhor amiga, Alice (Jessica Chastain), se culpa igualmente, por ter testemunhado Max sobre as grades do segundo andar, mas não ter conseguido evitar a queda.
Estas mulheres se tornam possíveis assassinas porque amam demais. O sentimento e a emoção se convertem em fraqueza, como de costume no gaslighting.
Celine, então, ficaria louca? Ou Alice? Por que não as duas? Elas são descritas enquanto mães protetoras e donas de casa nestes Estados Unidos conservadores dos anos 1950. Uma delas teve crises no passado e precisou ser internada num hospital psiquiátrico. A outra demonstra obsessão por remédios e insiste em passar cada vez mais tempo com o filho da vizinha, submetendo-o a situações de risco. Em contrapartida, os maridos seguem suas vidas, tranquilamente. Um deles chora isolado em seu quarto, como convém aos bons modos. O segundo apenas diz à esposa que se acalme, volte a dormir, e tudo ficará bem. Cabe às heroínas o escândalo.
Para ajudar, o roteiro começa a colocá-las uma contra a outra. Está comprovado que a morte de Max foi um acidente, porém o texto se diverte em plantar dúvidas na cabeça das duas, que passam a suspeitar da lealdade da melhor amiga. O diretor Benoît Delhomme acredita que a crise será ainda maior caso demonstre uma proximidade indissociável das protagonistas a princípio. Por isso, insiste em meia dúzia de cenas com a dupla abraçada, trocando confidências e carinhos, com a cabeça repousada no ombro da colega, de uma maneira física e íntima que raramente se desenha na sociedade norte-americana. Caso insistisse neste laço por mais algumas cenas, favoreceria a leitura da homossexualidade latente.
Ora, o diretor está longe de qualquer sutileza ou subentendido. Ele faz com que os dois casais iniciem o ato sexual ao mesmo tempo, via montagem paralela. Introduz música de tensão (do tipo que avisa o espectador, minutos antes da ação, que algo grave está prestes a acontecer) quando uma mão agarra a faca para cortar o bolo, ou quando segura uma xícara de chá. Somos avisados, literalmente desde a primeira cena, que este aparente drama se converterá em suspense psicológico, mesmo que o thriller demore a se materializar. Enquanto isso, multiplicam-se sentimentos e afetos (lágrimas, risos, carinhos) para justificar as derrapadas subsequentes. Estas mulheres se tornam possíveis assassinas porque amam demais. O sentimento e a emoção se convertem em fraqueza, como de costume no gaslighting.
Instinto Materno atingiria seu potencial caso assumisse o aspecto grotesco, exagerado, fantasista permitido pelo terror. Cenas como o desmaio no recital da escola, ou a queda da vovó com a xícara se mostram tão kitsch que precisariam do humor autorreferencial para se justificarem enquanto escolha consciente. O cinema de gênero consegue representar em imagens o estado de demência que tanto interessa a Delhomme. No entanto, ele insiste em manter certo decoro digno do drama clássico, mantendo os vestidos apertados, cabelos impecavelmente arrumados, e crimes que, apesar da violência, sustentam uma “delicadeza feminina” (o cuidado ao colocar as luvas de couro, o transporte meticuloso de medicamentos).
Logo, o projeto deseja mergulhar na cabeça de protagonistas que enlouquecem, porém, se recusa a enlouquecer junto delas. Neste sentido, adota um olhar invariavelmente masculino, ainda que adaptado do livro de uma escritora, e roteirizado por uma mulher. Prefere se manter à distância de Celine e Alice, evitando enxergar o mundo pela perspectiva delas. Julga a ambas por seus exageros, pela conduta intrusiva ou imprudente. O espectador se posiciona à distância, tentando entender o próximo passo destas figuras alucinadas, incompreensíveis, a quem se convida a ter piedade, nunca identificação.
Hollywood elevou ao patamar de subgênero os suspenses nos quais duas grandes atrizes são levadas a duelar uma contra a outra, sempre por motivos conjugais ou afetivos que as conduzem à beira da alucinação. O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, A Malvada, Notas sobre um Escândalo e Segredos de um Escândalo seriam bons exemplos. Instinto Materno, adaptado do homônimo franco-belga, busca se juntar ao grupo. No entanto, mesmo contando com duas atrizes excelentes, extrai pouco das capacidades destas.
Isso porque a condução das protagonistas se limita a sentimentos inequívocos e exagerados: a dor profunda, a alegria completa, o medo intenso. Como faz falta a capacidade de trabalhar sentidos implícitos, ou o questionamento progressivo das intenções alheias! Aqui, elas se amam ou se odeiam de uma cena à outra. A montagem dispensa as contemplações e meios-termos, necessários à gradação, para se lançar o quanto antes no enfrentamento. “Onde estão os remédios! Eu sei que você os pegou!”. Além de descontroladas, elas tampouco se mostram muito inteligentes enquanto estrategistas.
Ao final, resta um filme que acredita estar transmitindo algum questionamento profundo a respeito da feminilidade, da maternidade, da dificuldade de conhecer de fato os nossos vizinhos e amigos. Instinto Materno evolui de morte em morte, de crise em crise, de sumiço de criança ao próximo sumiço, sem que o mundo ao redor (e os próprios criadores) percebam o aspecto ridículo da trama rocambolesca. Caso assumissem o prazer de um filme B, cafona e autoconsciente, garantiriam melhor diálogo com as próprias regras do gênero. Delhomme não percebe que, ao invés de discutir criticamente o gaslighting praticado sobre estas personagens, apenas reforça a nossa diversão a partir de duas figuras loucas — porque mães, hormonais, impulsivas, e capazes de tudo. Mulheres são realmente perigosas.