Inverno em Paris (2022)

A etiqueta do luto

título original (ano)
Le Lycéen (2022)
país
França
gênero
Drama
duração
122 minutos
direção
Christophe Honoré
elenco
Paul Kircher, Juliette Binoche, Vincent Lacoste, Erwan Kepoa Falé, Adrien Casse, Anne Kessler, Pascal Cervo, Christophe Honoré
visto em
Cinemas

O diretor Christophe Honoré sempre manifestou o gosto por um cinema clássico nas formas e na linguagem — traduzido com frequência no gosto pelos musicais e pelo melodrama. Em suas últimas produções, tem refinado a abordagem de temas-chave destes registros (a morte, a desilusão amorosa, a passagem à fase adulta), buscando conciliar o prazer do artifício e a busca por uma representação naturalista dos sentimentos. De certa forma, este embate domina toda a sua cinematografia.

Inverno em Paris constitui um dos exemplos mais explícitos, e também mais bem-sucedidos, deste enfrentamento. O protagonista Lucas Ronis (Paul Kircher) narra a própria história, conversando com o espectador enquanto posa sob um fundo preto infinito, declamando seus pensamentos em uma espécie de palco teatral. Ele confessa cada tristeza, dúvida, rancor e afeto. Emite frases de cunho literário, incomuns para um adolescente: “Eu aceitei sacrificar a ideia do amor”, “É a história da minha vergonha que se instalou na minha cabeça”. Ergue-se ao patamar do herói trágico, tão infantil nas condutas quanto pomposo ao se referir a si próprio.

O garoto, seu irmão mais velho (Vincent Lacoste) e a mãe (Juliette Binoche) são enquadrados no centro da imagem, em planos de conjunto convencionais, agenciados com movimentos discretos de câmera. Apela-se ao academicismo conforme o roteiro discute a morte recente do pai e outros acidentes de percurso (uma paixão não correspondida, e uma segunda crise rumo à conclusão). Amor e morte pautam a descoberta de Lucas a respeito da vida adulta. Depois de um acidente de carro junto ao pai — o homem mais velho, interpretado pelo próprio cineasta, perde o controle do veículo e derrapa —, este último sofre um novo acidente, desta vez, fatal. Mesmo a penúria de Lucas chega com um aviso dos céus, tal qual ocorreria aos heróis de tragédias gregas.

O drama mergulha no erotismo decorrente da proximidade com a morte. É uma pena que, no último terço, a narrativa inclua mais uma reviravolta. Não havia tempo suficiente para acomodar esta nova catarse.

Desenvolve-se então um curioso estudo a respeito da etiqueta do luto, as formas corretas e impróprias de se comportar durante a perda de um ente querido. É autorizado debater política enquanto se vela o corpo? É aceitável não comparecer ao funeral, pela dificuldade de encarar o pai morto? Pode-se confessar publicamente que o falecido não acreditava em Deus? Brigar com o irmão mais velho, aos socos e insultos, em pleno jantar? Existe maneira adequada de ficar triste, ou então, no desespero desta situação-limite, toda reação seria perdoável?

O aspecto de crônica dos dias pós-morte produz os melhores instantes do longa-metragem. Honoré investiga a solidão do menino, a perdição pela cidade quando passa uma semana com o irmão em Paris. Nota-se a vontade crescente de se rebelar e protestar — sem saber ao certo contra o quê, nem contra quem. O autor dedica um olhar atento às pequenas coisas do cotidiano, que dificilmente seriam filmadas (ou seriam descartadas pela montagem) na maioria dos filmes: o ato de calçar sapatos dentro do carro, os talheres que caem no chão ao empilhar os pratos depois da refeição. Paira uma normalidade de classe-média; a insistência de nos encontrarmos diante de uma situação comum, ao invés de um episódio excepcional.

Em especial, o drama mergulha no erotismo decorrente da proximidade com a morte. A perda de uma pessoa querida pode estabelecer uma relação direta com a libido, a busca pelo gozo e uma libertação do real via êxtase sexual (fenômeno de caráter quase religioso para algumas pessoas). Lucas, que nunca havia se considerado gay, apesar do flerte constante com o melhor amigo, entrega-se à admiração por Lilio (Erwan Kepoa Falé), colega de quarto de seu irmão. O desejo por um corpo adulto canaliza esta vontade de enfim superar as incertezas da adolescência e se projetar numa vida estável adiante. Honoré filma o sexo entre dois homens de maneira frontal, sem esconder os corpos sob um lençol, por exemplo, apesar de evitar, em paralelo, o desejo de chocar. As belas cenas ocorrem, é claro, sobre um fundo azul — a cor preferida do cineasta.

É uma pena que, no último terço, a narrativa inclua mais uma reviravolta letal, e novos instantes de crise, dor, choro no carro, desespero familiar. Os acontecimentos se aceleram, a montagem salta rapidamente de uma semana à próxima. Não havia tempo suficiente para acomodar esta catarse tão perto do fim, no entanto, o diretor (nunca afeito ao comedimento), embute mais um motivo capaz de despertar o choro e a piedade. Acredita, em chave melodramática, que uma morte precisa conversar com outra, e que o sentimento de pesar do protagonista precisa se tornar externo, visível, explícito ao espectador. O resultado se enfraquece ao trocar a ternura palpável do terço central (quando Binoche desempenha um papel central) pelo espetáculo da tristeza.

Ao menos, este terá sido um dos projetos mais bem-sucedidos do diretor recentemente, no sentido de conseguir tanto embutir suas obsessões temáticas e estéticas quanto estabelecer um retrato verossímil da angústia da juventude. Fãs de um cinema convencional poderão se deleitar com a trilha sonora triste de piano e violinos, com os olhares perdidos do garoto pela cidade, com os abraços fraternos e conciliadores. Mesmo assim, persiste uma voracidade menos convencional no sexo, na relação nada moralista com a prostituição, e nesta experimentação de corpos que evita rotular a homossexualidade enquanto tal. 

PS: Cabe aqui, uma vez mais, apontar para a utilização de Paris enquanto cidade-fetiche para distribuidores internacionais. No Brasil, histórias situadas na capital francesa ganham invariavelmente o acréscimo “em Paris” no final do título. Le Lycéen (O Estudante) se tornou Inverno em Paris (enquanto os distribuidores norte-americanos preferiram Winter Boy, ou Garoto do Inverno). Coup de Chance (Golpe de Sorte) se tornou Golpe de Sorte em Paris; Un Peuple et son Roi (Um Povo e Seu Rei) foi traduzido como A Revolução em Paris; Bastille Day (Dia da Bastilha) virou Atentado em Paris; Murder Mystery 2 (Mistério de Assassinato 2) foi convertido em Mistério em Paris.  

Para piorar a situação, no caso de Inverno em Paris, o cartaz ostenta uma torre Eiffel ao fundo (símbolo obrigatório para comprovar que a história se passa, de fato, na capital francesa), embora os personagens nem sequer circulem por esta região; além de uma neve digital, que não desempenha nenhum papel nesta história. Mesmo que os cineastas se esforcem para desmistificar o imaginário estereotipado da cidade, os distribuidores estrangeiros insistem nessa romantização contraproducente das histórias. Querem transformar Paris em personagem central de cada filme onde ela aparece. Aqui, sua participação é módica, secundária. Face a um filme sobre desilusões amargas, o marketing ainda se agarra às ilusões.

Inverno em Paris (2022)
7
Nota 7/10

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