Kontinental ’25 (2025)

A parábola do suicida

título original (ano)
Kontinental ’25
país
Romênia
gênero
Comédia
duração
109 minutos
direção
Radu Jude
elenco
Eszter Tompa, Gabriel Spahiu, Adonis Tanța, Oana Mardare, Șerban Pavlu
visto em
75º Festival de Berlim (2025)

Orsolya (Eszter Tompa) é uma oficial de justiça em Cluj, na Transilvânia. Ela recebe a tarefa de desalojar Ion (Gabriel Spahiu), um homem em situação de rua, que ocupa ilegalmente um imóvel. A mulher faz uma abordagem respeitosa, exceto pela violência do fato que o sujeito realmente não teria para onde ir. Ora, são apenas ordens, pensam todos. Afina, aquele espaço precisa ser evacuado o quanto antes, para a construção de um hotel de luxo, o Kontinental. Orsolya concede algum tempo para ele arrumar suas coisas e partir; promete voltar em vinte minutos. Em desespero, Ion comete suicídio, enforcando-se no radiador. Ao se deparar com o corpo inconsciente, a mulher fica em estado de choque. Sente-se invadida pela culpa.

Esta história será vista, no início do longa-metragem, pelo espectador, que testemunha o caso junto à protagonista. Mais do que isso, nós temos acesso onisciente aos fatos, pois acompanhamos tanto a espera da oficial e dos policiais, numa praça ao lado, quanto a morte de Ion — que, aprendemos depois, já foi um atleta premiado. Depois, o episódio será narrado pela heroína, pelo menos seis vezes, para pessoas ao seu redor: a mãe, um padre, um antigo aluno da faculdade de direito, o superior hierárquico, uma colega de trabalho. É curioso voltarmos ao caso, inúmeras vezes, pela voz emocionada de Orsolya.

O filme utiliza o homem suicida enquanto estudo de caso. O cineasta ataca em particular a xenofobia e os ideais de extrema-direita que se multiplicam pela Europa.

Os interlocutores tentam acalmá-la. Afirmam, em uníssono, que não teve culpa nenhuma, nem pode ser acionada na justiça pelo ocorrido. Entretanto, surpreende a estratégia narrativa baseada na repetição — a cada novo encontro da mulher com conhecidos, já sabemos exatamente qual tema será abordado. Com seu tradicional humor afiadíssimo, o diretor Radu Jude efetua uma espécie de estudo acerca do papel dos funcionários e do próprio Estado nas desigualdades sociais. Começa sua aventura ao lado do falecido, que podemos considerar como nosso protagonista nos primeiros quinze minutos. Em seguida, joga a responsabilidade do ocorrido para o resto da sociedade.

Logo, o discurso utiliza Ion enquanto estudo de caso. A partir da fragilidade emocional da mulher, e do destempero dos demais (o aluno embriagado, o padre irritado, a mãe revoltada), permite traçar um grande panorama da contemporaneidade, sobretudo europeia. Julga o governo Orbán (“Como pode ser fascismo, se as pessoas votam nele?”), e critica a hipocrisia de Emmanuel Macron. Investiga os ícones de formação da Romênia, imortalizados em estátuas pelas cidades, a exemplo de Mihai Viteazul e Iuliu Maniu. Introduz elementos de cultura pop, como as letras de Ice T e citações ao filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders.

O cineasta ataca em particular a xenofobia, através da imagem da oficial de justiça (uma mulher húngara vivendo na Romênia, e falando em alemão ao telefone), e os ideais de extrema-direita que se multiplicam pelo continente. Os temas são abordados por meio de um sarcasmo corrosivo, que inclui a cena de sexo numa praça à noite, o ponto para a prática de esportes sobre a calçada, a maratona de piadas zen-budistas, a perseguição de um robô no parque e a presença de dinossauros motorizados, acariciados por Orsolya num instante de ternura. 

Através destes recursos, Jude insiste no absurdo das relações contemporâneas (no escritório da repartição pública, a arte serve a esconder o radiador), e na perda de valores da comunidade. Seria simples demais apenas gritar e constatar a existência de injustiças. Muito mais potente é transformar tal conteúdo indigesto numa paródia que, por meio do humor, esfrega nossos defeitos na cara, promovendo a identificação do espectador por meio dos maus exemplos. Podemos facilmente reconhecer a nós mesmos, ou nossos parentes, amigos e colegas de trabalho nas figuras tragicômicas desenhadas pelo autor.

Kontinental ’25 aproxima-se do público atual por meio de uma estética caseira, acessível. O diretor de fotografia Marius Panduru trabalha com uma captação digital de baixíssima qualidade (um telefone celular, talvez?) que teima em preservar o foco face às movimentações de cena. Promove, então, curiosos glitches na imagem, que nos lembram da presença constante do dispositivo em frente aos atores. Jude acena assim à era dos smartphones e da autoimagem, como se Orsolya e os colegas estivessem filmando a sua própria penitência para a diversão do público. Assistimos às esquetes relativamente independentes como quem navega pela timeline de uma rede social.

Desta maneira, dispensam-se os refletores, o maquinário, a maquiagem nos atores, os figurinos rebuscados. Os passantes pela rua encaram o dispositivo, em takes que a montagem insiste em manter. Deste modo, faz-se cinema com o povo da Romênia, ao invés de sobre ele. Tornam-se participantes, voluntariamente ou não, da paródia visando a eles mesmos. Tamanha informalidade da estética caseira aproxima a linguagem de uma pegadinha, uma reportagem sensacionalista — formatos propícios à descrença e à insanidade. O mundo se torna espetáculo.

Eszter Tompa se mostra bastante confortável no papel principal, assim como os colegas de elenco. Jude tem desenvolvido um sistema de humor de aparência documental, um tanto autobiográfico, trabalhando com o elenco de maneira homogênea. Talvez o discurso soe mais niilista do que propriamente analítico, ou investigativo (vide a conclusão, com os conjuntos habitacionais em silêncio). A insistência no causo inicial, com pouca variação, também provoca certo cansaço. Mesmo assim, o longa-metragem estima que, ao escutarmos inúmeras vezes o fato, perderemos a sensibilidade e a comoção quanto ao ocorrido. Tornamo-nos frios, insensíveis ao sujeito falecido. De certo modo, a crônica da indiferença visa a todos nós.

Kontinental ’25 (2025)
7
Nota 7/10

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