The Safe House (2025)

A revolução segundo as crianças

título original (ano)
La Cache (2025)
país
Suíça, Luxemburgo, França
gênero
Comédia, Histórico
duração
90 minutos
direção
Lionel Baier
elenco
Dominique Reymond, Michel Blanc, William Lebghil, Aurélien Gabrielli, Liliane Rovère, Ethan Chimienti, Adrien Barazzone, Larisa Faber
visto em
75º Festival de Berlim (2025)

“Façamos um pacto. Se você acreditar nessa história, eu prometo contar toda a verdade sobre essa família. Pelo menos, toda a verdade que importa: a deles”. Neste filme, o narrador se dirige diretamente ao espectador, sublinhando o fato de nos encontrarmos diante de uma ficção cinematográfica. Esqueça a imersão num período histórico: The Safe House (La Cache, no original) abraça o artifício com uma empolgação infantil. “É a grande história que vai chegar ao nosso filme: a história de maio de 1968”, segue o apresentador.

A história é narrada pelo alter-ego de Christophe Boltanski, o autor do livro autobiográfico que dá origem à trama, quando ainda era uma criança. A perspectiva infantil permite que ele se baseie na memória afetiva ao invés dos fatos. Isso significa certa liberdade para exagerar acontecimentos, inventar outros, e dar pesos desiguais aos episódios que lhe interessam. Esta adaptação literária não procura se aproximar de dados verificáveis a respeito do importante movimento, e sim fornecer uma versão assumidamente parcial daquele episódio, pela perspectiva do menino incapaz de compreender a dimensão política dos protestos.

Para o pequeno, este foi o momento em que os pais se encontravam nas ruas, revoltando-se contra o governo de De Gaulle, enquanto ele ficava na casa do avô, da avó e da bisavó russa, além de dois tios. Na tentativa de converter o apartamento num terreno de jogos, imagina um gato vivendo sob o assoalho, embora todos neguem a existência do animal. Ora, isso não impede o menino de deixar atum e leite pelos cantos — que desaparecem rapidamente quando ele vira os olhos. A comédia gosta de brincar entre o real e o imaginário.

Apesar de tantos instantes preciosos de humor e ternura, The Safe House deixa um gosto amargo na conclusão. Afinal, ele aborda com melancolia a ideia de fracassos práticos a partir das revoluções populares.

Por isso, o título La Cache (que poderia ser traduzido como “O Esconderijo”) imagina outros instantes em que os personagens, assustados, precisam se esconder do mundo assustador que os cerca. O avô médico foge do chefe de departamento, e esconde-se sob a mesa durante um almoço, com receio de pedir uma promoção. O tio pintor espreme-se no banco de trás do carro para deixar outra pessoa negociar suas telas com um comprador. Adiante, uma figura fundamental da política francesa escolherá aquele apartamento de classe média para escapar à fúria popular. E descobrimos que, mesmo durante a Segunda Guerra, o local era utilizado para a fuga.

Esta compreensão do lar enquanto espaço inviolável, separando o público do privado, permite que o termo safe house do título internacional seja compreendido tanto na condição de espaço seguro (como se diria numa psicoterapia) quanto na acepção de um espaço secreto, oculto. O lar bagunçado, onde todos se espremem no mesmo cômodo, por falta de aquecimento nos espaços adjacentes, converte-se num brinquedo maleável, capaz de se reconfigurar dependendo dos desejos (vide o quarto da bisavó no fundo, ou da cena de patrulha policial). 

Lionel Baier, diretor acostumado às leves crônicas de costumes, adora manipular as proporções desequilibradas: uma casa pequena demais para muitas pessoas; um carro minúsculo onde diversos amigos entram para conversar com a motorista; uma pista rolante onde se caminha em sentido inverso; uma pequena torrada com muita cobertura para pouco recheio, e assim por diante. A direção de arte carrega nos tons coloridos das roupas e cenários, enquanto a direção de fotografia imagina uma coreografia musical em pleno quintal do prédio, com os protagonistas em pijamas. O mundo, em maio de 1968, soa como um local empolgante de se viver.

A linguagem cinematográfica adota traquinagens semelhantes: após avó e neto dirigirem pela cidade, revela-se que o fundo de Paris constituía mera projeção sobre as janelas do carro parado. A escola do menino é claramente um painel desenhado ao fundo do enquadramento. A tela se divide, ocasionalmente, para duplicar os pontos de vista. O cineasta se permite intervir, tal qual a criança desmontando seu robozinho para descobrir as peças internas. Desta vez, no entanto, compartilha com o colega (o espectador) as suas descobertas, fazendo do próprio cinema um gesto lúdico.

Assim, a narrativa impede ao espectador descobrir qualquer elemento que o garotinho não possa compreender por conta própria. Em outras palavras, quem desejar conhecer mais a respeito do movimento de maio de 1968 precisará buscar outras fontes. Baier prefere investigar o reflexo do ocorrido das famílias, desenhando o que aconteceria enquanto os jovens e adultos estivessem envolvidos no combate. A solução claramente fantástica para o esconderijo faz com que a política se intrometa, literalmente, no apartamento, na condição de alegoria.

Apesar de tantos instantes preciosos de humor e ternura, The Safe House deixa um gosto amargo na conclusão. Afinal, ele aborda com melancolia a ideia de fracassos práticos a partir das revoluções populares (no dia seguinte aos protestos, tudo voltou a ser “exatamente como era”). O longa-metragem constitui, igualmente, o último trabalho do grande ator e comediante Michel Blanc, falecido em outubro de 2024. Por ironia, a narrativa termina com um funeral, realizado em frente ao apartamento — onde mais? O filme repleto de vida se encerra sob o signo da morte, trocando a euforia pela nostalgia. Baier sabe quando se divertir, e quando retornar ao lusco-fusco da vida adulta.

The Safe House (2025)
7
Nota 7/10

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