“Façamos um pacto. Se você acreditar nessa história, eu prometo contar toda a verdade sobre essa família. Pelo menos, toda a verdade que importa: a deles”. Neste filme, o narrador se dirige diretamente ao espectador, sublinhando o fato de nos encontrarmos diante de uma ficção cinematográfica. Esqueça a imersão num período histórico: The Safe House (La Cache, no original) abraça o artifício com uma empolgação infantil. “É a grande história que vai chegar ao nosso filme: a história de maio de 1968”, segue o apresentador.
A história é narrada pelo alter-ego de Christophe Boltanski, o autor do livro autobiográfico que dá origem à trama, quando ainda era uma criança. A perspectiva infantil permite que ele se baseie na memória afetiva ao invés dos fatos. Isso significa certa liberdade para exagerar acontecimentos, inventar outros, e dar pesos desiguais aos episódios que lhe interessam. Esta adaptação literária não procura se aproximar de dados verificáveis a respeito do importante movimento, e sim fornecer uma versão assumidamente parcial daquele episódio, pela perspectiva do menino incapaz de compreender a dimensão política dos protestos.
Para o pequeno, este foi o momento em que os pais se encontravam nas ruas, revoltando-se contra o governo de De Gaulle, enquanto ele ficava na casa do avô, da avó e da bisavó russa, além de dois tios. Na tentativa de converter o apartamento num terreno de jogos, imagina um gato vivendo sob o assoalho, embora todos neguem a existência do animal. Ora, isso não impede o menino de deixar atum e leite pelos cantos — que desaparecem rapidamente quando ele vira os olhos. A comédia gosta de brincar entre o real e o imaginário.
Apesar de tantos instantes preciosos de humor e ternura, The Safe House deixa um gosto amargo na conclusão. Afinal, ele aborda com melancolia a ideia de fracassos práticos a partir das revoluções populares.
Por isso, o título La Cache (que poderia ser traduzido como “O Esconderijo”) imagina outros instantes em que os personagens, assustados, precisam se esconder do mundo assustador que os cerca. O avô médico foge do chefe de departamento, e esconde-se sob a mesa durante um almoço, com receio de pedir uma promoção. O tio pintor espreme-se no banco de trás do carro para deixar outra pessoa negociar suas telas com um comprador. Adiante, uma figura fundamental da política francesa escolherá aquele apartamento de classe média para escapar à fúria popular. E descobrimos que, mesmo durante a Segunda Guerra, o local era utilizado para a fuga.
Esta compreensão do lar enquanto espaço inviolável, separando o público do privado, permite que o termo safe house do título internacional seja compreendido tanto na condição de espaço seguro (como se diria numa psicoterapia) quanto na acepção de um espaço secreto, oculto. O lar bagunçado, onde todos se espremem no mesmo cômodo, por falta de aquecimento nos espaços adjacentes, converte-se num brinquedo maleável, capaz de se reconfigurar dependendo dos desejos (vide o quarto da bisavó no fundo, ou da cena de patrulha policial).
Lionel Baier, diretor acostumado às leves crônicas de costumes, adora manipular as proporções desequilibradas: uma casa pequena demais para muitas pessoas; um carro minúsculo onde diversos amigos entram para conversar com a motorista; uma pista rolante onde se caminha em sentido inverso; uma pequena torrada com muita cobertura para pouco recheio, e assim por diante. A direção de arte carrega nos tons coloridos das roupas e cenários, enquanto a direção de fotografia imagina uma coreografia musical em pleno quintal do prédio, com os protagonistas em pijamas. O mundo, em maio de 1968, soa como um local empolgante de se viver.
A linguagem cinematográfica adota traquinagens semelhantes: após avó e neto dirigirem pela cidade, revela-se que o fundo de Paris constituía mera projeção sobre as janelas do carro parado. A escola do menino é claramente um painel desenhado ao fundo do enquadramento. A tela se divide, ocasionalmente, para duplicar os pontos de vista. O cineasta se permite intervir, tal qual a criança desmontando seu robozinho para descobrir as peças internas. Desta vez, no entanto, compartilha com o colega (o espectador) as suas descobertas, fazendo do próprio cinema um gesto lúdico.
Assim, a narrativa impede ao espectador descobrir qualquer elemento que o garotinho não possa compreender por conta própria. Em outras palavras, quem desejar conhecer mais a respeito do movimento de maio de 1968 precisará buscar outras fontes. Baier prefere investigar o reflexo do ocorrido das famílias, desenhando o que aconteceria enquanto os jovens e adultos estivessem envolvidos no combate. A solução claramente fantástica para o esconderijo faz com que a política se intrometa, literalmente, no apartamento, na condição de alegoria.
Apesar de tantos instantes preciosos de humor e ternura, The Safe House deixa um gosto amargo na conclusão. Afinal, ele aborda com melancolia a ideia de fracassos práticos a partir das revoluções populares (no dia seguinte aos protestos, tudo voltou a ser “exatamente como era”). O longa-metragem constitui, igualmente, o último trabalho do grande ator e comediante Michel Blanc, falecido em outubro de 2024. Por ironia, a narrativa termina com um funeral, realizado em frente ao apartamento — onde mais? O filme repleto de vida se encerra sob o signo da morte, trocando a euforia pela nostalgia. Baier sabe quando se divertir, e quando retornar ao lusco-fusco da vida adulta.