Uma floresta à noite. Névoa por todos os lados. No interior de um casarão, isolado em meio à natureza, adolescentes dançam ao som de rock. O ano é 1967, durante a quarta-feira de cinzas. Um rapaz possui o rosto estranhamente branco, e veste trajes vampirescos. Outro agarra uma garota à força, mas depois de algumas tentativas, deixa-a partir. Alguns casais desaparecem pelos fundos da casa, ou pelos cômodos no andar de cima. Enquanto os corpos se movem na pista, estranhos focos de luz acompanham, pontualmente, um ou outro rosto.
Françoise, garota de dezessete anos, vivendo num internato católico, tem apenas uma certeza: “Amanhã estarei morta”. Ela confessa sua convicção a amigos e amigas, baseada num sonho premonitório. “Não vou viver até os vinte anos”, relata, sem qualquer tristeza na voz. Por isso, decide fazer da festa proibida o evento perfeito para perder a virgindade e experimentar alguma forma de êxtase. O ambiente corrobora com a impressão de uma tragédia iminente: o disco encontrado pela garota, entre dezenas de opções disponíveis, traz como título “Se você soubesse que vai morrer amanhã”.
A antecipação sinistra não para por aí. Um dos primeiros diálogos evoca a frase “Lembre-se que você é pó, e que ao pó retornará”. Em conversa com um adulto, Françoise e sua amiga Delphine discutem: “Eu morro um pouco a cada dia. E vocês, vão morrer como?”. Ninguém se abala, chora, desespera. Fala-se em serviço militar obrigatório, nos medos decorrentes da Guerra Fria. O mundo já parece estar acabando, de qualquer maneira, de modo que a finitude não assusta a ninguém. Melhor então fugir ao controle das freiras e viver intensamente a última noite antes do apocalipse.
O autor prioriza a sugestão do terror à concretização do mesmo. La Morsure investe sobretudo na atmosfera carregadíssima, tal qual um exercício de linguagem.
Como se percebe, La Morsure (ou A Mordida, em tradução literal) parte de um imaginário específico, às vésperas de maio de 1968, dos movimentos de contracultura, e dos embates entre repressão conservadora e libertação da juventude europeia. O diretor e roteirista Romain de Saint-Blanquat resgata este período sem romantizá-lo, nem fetichizá-lo. Prefere, em contrapartida, compreender o final da década de 1960 enquanto momento de suspensão e descrença no futuro — uma espécie de parêntese do século XX. Nada melhor, neste sentido, do que a mortalidade e as ferramentas do cinema de horror para comentar a turbulenta sociopolítica.
O terror se instaura aos poucos, ainda no convento. Presa pelas freiras na enfermaria, Françoise manifesta um surto libertário regado a sangue, janelas quebradas, estátuas profanadas. Qualquer tentativa de extravasar pulsões resulta num gesto violento. Então, surgem vampiros e abusadores reais. O roteiro acena a inúmeras armadilhas no caminho das duas amigas: estupro por parte do desconhecido que lhes oferece carona, abuso pelos garotos escolhidos na festa, mordida pelo garoto que afirma ser um morto-vivo, perseguição pela polícia. A certa altura da noite, os convidados desaparecem. O sobrenatural anda à espreita.
No entanto, o autor prioriza a sugestão do terror à concretização do mesmo. Talvez não seja à toa a escolha de uma cantiga de ninar sussurrada para a abertura, muito semelhante a O Bebê de Rosemary (1968). O francês retira de Roman Polanski o prazer por um cinema de gênero erótico e sugestivo, que raramente materializa os medos representados em metáforas. Tal qual A Faca na Água (1962), a violação dos corpos (através do sexo e/ou morte) é prometida a cada cena. Mesmo assim, as meninas conseguem driblar sinas, monstros e acidentes de carro ao longo da noite.
La Morsure investe sobretudo na atmosfera carregadíssima, tal qual um exercício de linguagem. O diretor de fotografia Martin Roux reproduz, na imagem digital, a impressão de uma película desgastada, de cores “queimadas” e contrastadas, típica dos anos 1950 e 1960. Os focos de luz alternados durante a festa constituem o ápice do delírio sensual, enquanto a iluminação pendular, criando sombras assustadoras na floresta, remete tanto aos contos de fadas sinistros quanto às criações assumidamente artificiais do expressionismo alemão. A magnífica trilha sonora combina rock, baladas da música popular francesa e um trabalho sugestivo de ruídos e sons da natureza.
Por outro lado, a jornada de passagem à fase adulta, em si própria, é deixada em segundo plano. Os caminhos são simples, fatalistas ou previsíveis, assim como as fábulas que lhe servem de referência. Apesar do belo trabalho de direção de arte e atuação das duas atrizes principais, elas ainda aparentam participar de uma festa à fantasia, no sentido de fazerem-de-conta que se encontram nos anos 1960, sem encarná-lo de fato. Os recursos de cenário e figurino chamam tanta atenção para si próprios que ainda remetem à brincadeira, à encenação lúdica, ao invés de um retorno real à época. Continuamos distantes de um naturalismo, em partes almejado pelos criadores.
Em outras palavras, o longa-metragem prefere o imaginário popular das festas, da contracultura e do medo da morte a um contato direto com a reconstrução destes momentos. Ele soa como um sonho, ou pesadelo, do qual personagens e espectadores acordariam no final (vide a mordida do vampiro, as mensagens do pêndulo, o destino do carro utilizado para a carona). Trabalha, assim, na chave da frustração, ou da intensa promessa de mortes e prazeres que jamais integram a jornada das personagens. Estes locais e eventos servem como ideias, alusões, panos de fundo. Saint-Blanquat possui menos interesse na História do que no seu cheiro, textura, ritmo, aparência. Este painel sugestivo vale mais do que as pessoas e ações que o ocupam.