Lembranças de Todas as Noites é um filme pequeno. Não em duração (são duas horas de narrativa), nem exatamente na economia de personagens (há três núcleos paralelos, somando cerca de doze figuras retratadas ao longo da trama). Este é um projeto singelo no que diz respeito à narrativa e à ausência de conflitos. Ao longo de um único dia, de manhã até o anoitecer, três mulheres perambulam pela cidade, sem rumo. Enquanto isso, se permitem admirar anônimos, escutar as falas alheias, interagir com vizinhos. Trata-se de um dia leve, de descanso, onde nenhum problema particular cruza o caminho do trio.
Elas desejam pegar um ônibus, mas até encontrarem o ponto correto, deixam-se conduzir pelas ruelas mais atraentes. Precisam medir o consumo de gás das casas (parte do trabalho da garota jovem), porém, no caminho, se desviam, aceitam tangerinas de presente, ajudam um senhor idoso a reencontrar o percurso de casa. A cineasta Yui Kiyohara imagina o avesso da pressa contemporânea, o contrário das lógicas da performance e do rendimento. Propõe, em contrapartida, uma ode ao ócio e à comunhão com o ambiente.
Por isso, nunca coloca os humanos acima das paisagens. Há raríssimos close-ups, e o primeiro deles surge somente na segunda metade da experiência. Antes disso, os corpos em deslocamento possuem importância equivalente àquela das árvores, das pontes, das ruas vazias. Os enquadramentos são abertos, variando entre o plano de conjunto e o plano geral. Entre si, as mulheres tampouco estabelecem qualquer tipo de hierarquia. Às vezes, suas amigas, confidentes e demais coadjuvantes recebem tratamento semelhante em termos de desenvolvimento, e chegam a ganhar cenas próprias.
Este olhar acolhedor busca o perpétuo movimento. Enquanto isso, a trilha sonora propõe um teor mágico, lúdico.
Este olhar democrático e acolhedor busca o perpétuo movimento. Em outras palavras, há muitas atividades para pouca ação, ou ainda, muita agitação, deslocamento, para pouco propósito. A cineasta admira um grupo de jovens que se aquecem para um ensaio musical (embora nem o ensaio, nem a composição, sejam revelados ao espectador). Depois, se atém diante de outros que dançam livremente, sem música ao redor, agitando-se conforme a trilha sonora imaginada em suas cabeças. Sr. Tanaka, o homem idoso, foge de casa sem saber para onde, e caminha por onde lhe dá vontade. É preciso seguir adiante, embora o destino de tal fluxo seja secundário. O movimento se converte num objetivo em si próprio.
Enquanto isso, a trilha sonora propõe um teor mágico, lúdico, ausente nas captações naturalistas ou no trabalho singelo de som direto. Talvez para evitar uma apreensão muito submissa ao real, Kiyohara incorpora ritmos e melodias compostos por um aparente misto de instrumentos musicais, brinquedos e objetos não-concebidos para a prática da música. Esses ruídos dissonantes ainda mantêm uma aura doce, como se surgissem de um tecladinho infantil, um chocalho ou um piano de plástico com teclas coloridas.
A introdução do realismo fantástico aproxima Lembranças de Todas as Noites de um sonho, do tipo que embala o sono sem perturbá-lo, nem deixar marcas duradouras no dia seguinte. Poucos cineastas se dedicam com tamanho afinco a retratar aquilo que, na maioria das histórias de ficção, nem sequer seria filmado, ou então seria dispensado na mesa de montagem, para priorizar o ritmo e a dinâmica. A artista japonesa acredita naquilo que talvez se chamasse apressadamente de “tempos mortos”, ainda que não exista nada morto aqui.
Enquanto deambulam, as três mulheres refletem acerca dos entes queridos que se foram, inventam ficções para si próprias (a falsa declaração de aniversário), dançam como se ninguém estivesse olhando. Longe de obrigações (a estudante não está na escola, a trabalhadora se encontra desempregada), podem agir com rara autonomia e senso de espontaneidade. Eles podem soar absurdos, improváveis, por se oporem à noção de uma contemporaneidade individualista, esgotada mentalmente.
Situando-se num tempo indefinido e um espaço vasto (ao contrário das grandes cidades japonesas, a diretora opta por pequenos bairros do subúrbio), o longa-metragem trata como sonho aquilo que seria uma existência saudável, ponderada, movida por desejos e prazeres ao invés de obrigações e regras sociais. Não por acaso, as instituições estão ausentes, assim como maridos, namorados, chefes, filhos. Lembranças de Todas as Noites parece responder à pergunta utópica: o que eu faria com meu dia, se não precisasse fazer nada? Se não tivesse obrigações com nada e com ninguém?
O projeto responde com um humor mínimo, que talvez passe despercebido a tantos olhares. O título menciona a noite, sobreposto na tela a uma imagem do pôr do sol; dois amigos passeiam com roupas de cores alternadas (camisa branca e calça cinza, para um, e camisa cinza e calça branca, para outro); a mulher desempregada passa a imitar a dança de um terceiro; a vendedora e a cliente não se entendem sobre qual doce a loja está sugerindo. “Este aqui?”. “Não, aquele”. “Ah, este?”. “Não, o do lado”. “Ah, este aqui, de cor rosa?”. “Sim, com recheio de morango”. “Vou querer o branco, por favor”.
É possível que a experiência não seja particularmente memorável aos espectadores, sobretudo dentro de um festival de cinema repleto de obras provocadoras, surpreendentes, experimentais. Perto de tantas propostas radicais de construção estética e política, o apelo às pequenezas do dia a dia pode soar secundário, justamente. Há uma beleza rara no filme que dedica anos de preparação, dezenas de técnicos e muito dinheiro e esforço de produção para filmar uma mulher tomando sorvete, em silêncio, ao lado de outra que reencontrou por acaso. Muito esforço é aplicado em parecer que não existe esforço nenhum; muito vigor é empregado nesta ode à contemplação.