Um projeto como Lesbian Space Princess traz certo alívio ao circuito cinematográfico. É interessante como um filme pode ser tão simples e, ao mesmo tempo, preencher uma lacuna evidente na representação LGBTQIA+ no circuito. Fazem falta as iniciativas de pessoas queer, para pessoas queer (ou seja, sem pressupor a heterossexualidade do público até-prova-em-contrário), que se permitam brincar com os códigos dessa cultura de maneira leve, autorreferente. Espectadores cis-hétero cresceram rodeados de animações e aventuras juvenis do gênero, mas raras investidas adultas e lúdicas trazem algo semelhante ao público, gay, bi, lésbico, trans e travesti.
No centro da trama está Saira (voz original de Shabana Azeez), a princesa lésbica do espaço, vivendo no planeta Clitópolis. Duas semanas após conhecer a aventureira Kiki (Bernie Van Tiel), já está perdidamente apaixonada, montando um álbum dos melhores momentos juntas. A pressão é excessiva para a primeira namorada da heroína, que a dispensa bruscamente. Saira, uma jovem de origem indiana, sem amigos, e pouco apreciada pelas duas mães, se vê sozinha mais uma vez. O que se inicia como um romance de ruptura e reparação se transforma numa jornada de autodescoberta e empoderamento feminino.
Por isso, o roteiro equilibra o humor com um subtexto dramático. Isso inclui a transformação da ansiedade de Saira num antagonista ameaçador e perverso, cujas aparições são alternadas com piadas rápidas, espirituosas, abrangendo toda a comunidade queer. Melhor do que isso, a trama se volta sobretudo à ridicularização dos homens brancos e heterossexuais. Neste contexto futurista, os Straight White Maliens não dominam mais o mundo, sendo rejeitados num planeta-lixão, onde choram pela dificuldade de conseguir mulheres (o chick magnet desenvolvido por eles acaba atraindo, literalmente, pintinhos). Eles serão menos malvados do que patéticos — indivíduos ressentidos e emasculados pela dominação interplanetária feminina.
O filme aproveita muito bem a ludicidade do desenho, em conjunção com os aspectos mais sarcástico da cultura queer, escritos e dirigidos por quem claramente conhece este universo.
Somam-se ao conjunto um animal de estimação que consiste numa pequena vagina; inúmeras piadas de duplo sentido (como a intraduzível “They say space is a vacuum, but nothing sucks like me”); gags envolvendo cantores de música pop, e a infame cena de sexo de Azul É a Cor Mais Quente. Nada escapa a este amplo imaginário pop de reciclagem, citações e paródias. A drag queen Kween Kong encarna uma das personagens, uma drag de moral ambígua chamada Blade, que atrai Saira para seu bar num espaço punk-rock da galáxia.
Curiosamente, os traços da animação apelam a algo colorido, próximo do universo infantil — não estamos muito distantes do estilo de Hora de Aventura e da magnífica série The Midnight Gospel. A simplicidade da caracterização tanto das personagens quanto dos cenários aprofunda o humor, em contraste com o conteúdo claramente adulto abordado pelas diretoras Emma Hough Hobbs e Leela Varghese. O aspecto acessível e referencial dos desenhos também contribui a normalizar as discussões, que envolvem relacionamentos afetivos, autoestima de indivíduos queer e aceitação no interior das famílias.
“Todo o universo é feito para vocês, lésbicas racializadas”, reclama um dos homens brancos — divertidamente representados pela forma de um quadrado sem graça, sem detalhes. Em sua aparente inocência, Lesbian Space Princess pressupõe um mundo de rainhas lésbicas e princesas feministas, percebido enquanto núcleo funcional e exemplar. Apesar de rituais um tanto perversos envolvendo a filha do sangue real, esta sociedade se sustenta de modo autônomo, dispensando por completo a presença masculina para qualquer tarefa.
A simples ideia que uma garota indiana e lésbica possa se tornar uma guerreira espacial constitui um destes horizontes de espelhamento nem sempre oferecidos ao público queer. Ainda são raras as histórias de ícones gays e lésbicos (com indícios possíveis da transexualidade de Saira, devido às bandeiras no início), além de personagens LGBQTIA+ que roubam, ludibriam, se aproveitam dos demais. A identidade de gênero e a orientação sexual deixam de representar uma questão de moral — a mulher lésbica não se torna nem vítima, nem líder virtuosa, mas uma jovem com o direito de, inclusive, carregar uma infinidade de angústias e inseguranças.
A comédia ainda inclui, de maneira bastante natural, discussões de caráter sexual entre mulheres, encontrando uma solução hilária para saciar a sede dos homens cis-hétero revoltados num canto da galáxia. Compreende que a personagem não pode ser dissociada de seu desejo, e que a prática sexual seria uma manifestação perfeitamente comum de afeto entre adultos. Neste sentido, enfrenta igualmente o moralismo da indústria que concebe belos heróis e heroínas, contanto que plenamente assexualizados — sobretudo no caso da Marvel, alvo de algumas piadas do roteiro.
Hobbs e Varghese inclusive reservam espaço para nos lembrar da própria construção do filme, ao colocar o roteiro deste longa-metragem nas mãos da protagonista. Nota-se um nível benéfico de delírio e surrealismo na viagem, algo que somente a animação permitiria com tamanha facilidade. O filme aproveita muito bem a ludicidade do desenho, em conjunção com os aspectos mais sarcástico da cultura queer, escritos e dirigidos por quem claramente conhece este universo. Assim, distancia-se de tantas homenagens feitas por terceiros, marcadas por uma benevolência condescendente. Os artistas e espectadores LGBQTIA+ têm o direito de fazer seus filmes, e de se enxergar nas telas assim como quaisquer outros. Projetos como Lesbian Space Princess promovem esta forma tão importante de identificação e acolhimento.