Lesbian Space Princess (2025)

A comédia da cultura queer

título original (ano)
Lesbian Space Princess (2025)
país
Austrália
linguagem
Comédia, Animação
duração
87 minutos
direção
Emma Hough Hobbs, Leela Varghese
vozes originais
Shabana Azeez, Gemma Chua Tran, Richard Roxburgh, Bernie Van Tiel, Mark Bonanno
visto em
75º Festival de Berlim (2025)

Um projeto como Lesbian Space Princess traz certo alívio ao circuito cinematográfico. É interessante como um filme pode ser tão simples e, ao mesmo tempo, preencher uma lacuna evidente na representação LGBTQIA+ no circuito. Fazem falta as iniciativas de pessoas queer, para pessoas queer (ou seja, sem pressupor a heterossexualidade do público até-prova-em-contrário), que se permitam brincar com os códigos dessa cultura de maneira leve, autorreferente. Espectadores cis-hétero cresceram rodeados de animações e aventuras juvenis do gênero, mas raras investidas adultas e lúdicas trazem algo semelhante ao público, gay, bi, lésbico, trans e travesti. 

No centro da trama está Saira (voz original de Shabana Azeez), a princesa lésbica do espaço, vivendo no planeta Clitópolis. Duas semanas após conhecer a aventureira Kiki (Bernie Van Tiel), já está perdidamente apaixonada, montando um álbum dos melhores momentos juntas. A pressão é excessiva para a primeira namorada da heroína, que a dispensa bruscamente. Saira, uma jovem de origem indiana, sem amigos, e pouco apreciada pelas duas mães, se vê sozinha mais uma vez. O que se inicia como um romance de ruptura e reparação se transforma numa jornada de autodescoberta e empoderamento feminino.

Por isso, o roteiro equilibra o humor com um subtexto dramático. Isso inclui a transformação da ansiedade de Saira num antagonista ameaçador e perverso, cujas aparições são alternadas com piadas rápidas, espirituosas, abrangendo toda a comunidade queer. Melhor do que isso, a trama se volta sobretudo à ridicularização dos homens brancos e heterossexuais. Neste contexto futurista, os Straight White Maliens não dominam mais o mundo, sendo rejeitados num planeta-lixão, onde choram pela dificuldade de conseguir mulheres (o chick magnet desenvolvido por eles acaba atraindo, literalmente, pintinhos). Eles serão menos malvados do que patéticos — indivíduos ressentidos e emasculados pela dominação interplanetária feminina.

O filme aproveita muito bem a ludicidade do desenho, em conjunção com os aspectos mais sarcástico da cultura queer, escritos e dirigidos por quem claramente conhece este universo.

Somam-se ao conjunto um animal de estimação que consiste numa pequena vagina; inúmeras piadas de duplo sentido (como a intraduzível “They say space is a vacuum, but nothing sucks like me”); gags envolvendo cantores de música pop, e a infame cena de sexo de Azul É a Cor Mais Quente. Nada escapa a este amplo imaginário pop de reciclagem, citações e paródias. A drag queen Kween Kong encarna uma das personagens, uma drag de moral ambígua chamada Blade, que atrai Saira para seu bar num espaço punk-rock da galáxia. 

Curiosamente, os traços da animação apelam a algo colorido, próximo do universo infantil — não estamos muito distantes do estilo de Hora de Aventura e da magnífica série The Midnight Gospel. A simplicidade da caracterização tanto das personagens quanto dos cenários aprofunda o humor, em contraste com o conteúdo claramente adulto abordado pelas diretoras Emma Hough Hobbs e Leela Varghese. O aspecto acessível e referencial dos desenhos também contribui a normalizar as discussões, que envolvem relacionamentos afetivos, autoestima de indivíduos queer e aceitação no interior das famílias.

“Todo o universo é feito para vocês, lésbicas racializadas”, reclama um dos homens brancos — divertidamente representados pela forma de um quadrado sem graça, sem detalhes. Em sua aparente inocência, Lesbian Space Princess pressupõe um mundo de rainhas lésbicas e princesas feministas, percebido enquanto núcleo funcional e exemplar. Apesar de rituais um tanto perversos envolvendo a filha do sangue real, esta sociedade se sustenta de modo autônomo, dispensando por completo a presença masculina para qualquer tarefa. 

A simples ideia que uma garota indiana e lésbica possa se tornar uma guerreira espacial constitui um destes horizontes de espelhamento nem sempre oferecidos ao público queer. Ainda são raras as histórias de ícones gays e lésbicos (com indícios possíveis da transexualidade de Saira, devido às bandeiras no início), além de personagens LGBQTIA+ que roubam, ludibriam, se aproveitam dos demais. A identidade de gênero e a orientação sexual deixam de representar uma questão de moral — a mulher lésbica não se torna nem vítima, nem líder virtuosa, mas uma jovem com o direito de, inclusive, carregar uma infinidade de angústias e inseguranças.

A comédia ainda inclui, de maneira bastante natural, discussões de caráter sexual entre mulheres, encontrando uma solução hilária para saciar a sede dos homens cis-hétero revoltados num canto da galáxia. Compreende que a personagem não pode ser dissociada de seu desejo, e que a prática sexual seria uma manifestação perfeitamente comum de afeto entre adultos. Neste sentido, enfrenta igualmente o moralismo da indústria que concebe belos heróis e heroínas, contanto que plenamente assexualizados — sobretudo no caso da Marvel, alvo de algumas piadas do roteiro.

Hobbs e Varghese inclusive reservam espaço para nos lembrar da própria construção do filme, ao colocar o roteiro deste longa-metragem nas mãos da protagonista. Nota-se um nível benéfico de delírio e surrealismo na viagem, algo que somente a animação permitiria com tamanha facilidade. O filme aproveita muito bem a ludicidade do desenho, em conjunção com os aspectos mais sarcástico da cultura queer, escritos e dirigidos por quem claramente conhece este universo. Assim, distancia-se de tantas homenagens feitas por terceiros, marcadas por uma benevolência condescendente. Os artistas e espectadores LGBQTIA+ têm o direito de fazer seus filmes, e de se enxergar nas telas assim como quaisquer outros. Projetos como Lesbian Space Princess promovem esta forma tão importante de identificação e acolhimento.

Lesbian Space Princess (2025)
9
Nota 9/10

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