Louis Armstrong’s Black & Blues (2022)

Heróis discretos da América Negra

título original (ano)
Louis Armstrong’s Black & Blues (2022)
país
EUA
linguagem
Documentário
duração
106 minutos
direção
Sacha Jenkins
visto em
Cinemas

Em primeiro lugar, o que salta aos olhos no documentário da Apple TV+ é o tamanho da produção. No Brasil, o cinema documentário, que representa uma fatia significativa de nossas produções anuais, se caracteriza por orçamentos baixos, às vezes baixíssimos, dentro dos quais os diretores fazem o possível a partir de poucos recursos. No universo das grandes plataformas de streaming, chegam ao público estas experiências raras de blockbusters documentários, esbanjando farto uso de imagens, entrevistas com personalidades importantes sob uso controlado de luz, além de animações, tratamento sofisticado de som direto e mixagem.

Bons ou ruins, estes projetos soam polidos, dentro de certa perspectiva de sofisticação  e profissionalismo. Podem ser pouco inventivos, ou mesmo inócuos em seus discursos, porém impressionam pela quantidade de investimento e pelo acabamento de um formato que, nos cinemas periféricos, se acostumou associar à guerrilha. Louis Armstrong’s Black & Blues é uma destas produções “com cara de Oscar”, no bom e mau sentidos do termo. Aqui, a competência é acompanhada de certa impessoalidade, e o brilho das imagens e fotografias, de um aspecto consensual — congratulatório sem se tornar elogioso em excesso, e crítico, porém não muito.

A biografia evoca e descreve seu personagem principal de modo relativamente cronológico, iniciando-se com a infância, e encerrando na morte. No meio do percurso, entretanto, rejeita os principais passos (formação musical, primeira canção de sucesso, venda de álbuns, etc.) para privilegiar reflexões acerca da importância do músico nos Estados Unidos. Logo, o projeto está menos interessado em nos lembrar da existência de um grande músico do que em investigar o que ele representou, enquanto símbolo, para a América Negra. Enquanto tantos marchavam pelas ruas em busca de direitos civis, por que ele permanecia à margem do movimento?

De acordo com o longa-metragem, Louis Armstrong foi, sim, um homem muito crítico ao segregacionismo e à exploração dos negros, embora preferisse emitir seus comentários no círculo familiar.

O diretor Sacha Jenkins adota uma postura clara a este respeito. Seu discurso possui o mérito de um ponto de vista unívoco, assumido enquanto tal. De acordo com o longa-metragem, Louis Armstrong foi, sim, um homem muito crítico em relação ao segregacionismo, à exploração dos negros, e solidário àquele que os marchavam, embora preferisse emitir seus comentários longe dos holofotes, no círculo familiar. Ao invés de ocupar as ruas com faixas e frases de protesto, fazia depósitos bancários aos organizadores. A montagem pinça as raras colocações políticas do trompetista para combater o senso comum de que teria sido um Uncle Tom, um negro servil e rendido à supremacia branca.

Através de depoimentos de próximos, somos levados a conceber um homem de notável estoicismo e pragmatismo. Mesmo triste, mesmo irritado com o tratamento inferior que lhe concediam os brancos, tocou “mil vezes”, em suas palavras, nos hotéis onde era proibido de se hospedar. Armstrong introduziu, entre as vozes negras, o argumento de que “não enxerga cor” e nunca se posicionaria contra os brancos, que constituíam parte significativa de seus fãs e público. Jenkins valoriza a resistência do sujeito que não cumprimentava o amigo branco após o show, por saber dos problemas que teria em se aproximar da mesa alheia. O artista “conhecia o seu lugar”, com todo o incômodo que tal sugestão possa despertar.

A tese dos criadores sugere que Armstrong era um homem mais velho quando os jovens marchavam e, portanto, vindo de outra formação, de uma educação pré-revolucionária. Seria preciso colocar as pessoas e coisas em seus contextos históricos. Logo, Armstrong teria reagido tanto quanto soube fazer, e da maneira que pôde, dada a sua história, sua formação política, social, religiosa. Seria legítimo exigir de gerações passadas um esclarecimento que viemos a ter apenas posteriormente? As exigências políticas podem ser aplicadas de modo retroativo? Por esta razão, o debate vai além do protagonista, e se estende à compreensão global do ativismo ao longo das décadas.

Em contrapartida, a vontade de valorizar a figura tão depreciada ao longo do tempo acaba ultrapassando o limite do comedimento e esbarrando em certos exageros. As falas insistem que o músico foi ótimo marido, grande amigo, ator fácil de trabalhar em sets de filmagem, tolerante com agentes difíceis, incapaz de desafinar, dotado de uma audição perfeita. Além disso, seria inovador, pioneiro, o pai do jazz, o criador do scat, o primeiro a ter o nome acima da foto num cartaz, o primeiro a lotar casas de show destinadas a brancos, o primeiro… Tantos elogios e enumerações tentam equilibrar o discurso de um artista “vendido” ao sistema. Ele teria sido passivo, conivente, mas genial.

A montagem faz questão de dispersar estes temas de maneira fluida, ainda que desorganizadas ao longo da sessão. Menciona-se o racismo, muda-se para gravações, para o scat, para a vida de casal, e então retorna-se ao racismo, ao trabalho no cinema, ao prazer de escrever cartas, e ao racismo novamente… Em oposição à lógica do espetáculo e do choque, comum aos documentários reveladores, repletos de imagens inéditas ou informações secretas, Louis Armstrong’s Black & Blues procura se construir como uma digressão, ao longo da qual temas vão e vem, de acordo com a lembrança pinçada ao acaso. O resultado é agradável, embora etéreo, levíssimo diante de temas pesados.

A decisão de abordar com tamanho despojamento o histórico segregacionista dos Estados Unidos produz os melhores e piores instantes do documentário. Ele possui a fluidez, a elegância e a atmosfera inebriante das belas performances de jazz, no entanto, combate conflitos políticos e éticos graves na chave da dispersão: “Mas veja bem, não foi bem assim…”, “Mas ao mesmo tempo, ele era um grande músico…”, “Enquanto uns o chamam de vendido, podemos ver um homem de notável resistência…”, parece dizer o filme, cena após cena. 

Diversos filmes de fãs procuram mostrar que seu biografado foi o melhor de sua época. Já Jenkins coloca-se na função de advogado de defesa, trazendo novos argumentos e circunstâncias atenuantes aos jurados (no caso, nós, os espectadores) na hora de avaliar este homem e lhe conceder o benefício da dúvida. Mais do que reforçar os traços positivos de Armstrong, ele se dedica a atenuar os negativos, e proporcionar uma imagem próxima do neutro, do aceitável. O cineasta negro recupera os ídolos do movimento negro norte-americano, e pede clemência a outros mal compreendidos em suas épocas. Sua visão política é marcada pelo acolhimento e pelo otimismo, ao invés do julgamento moral tão comum à época de caça às bruxas em redes sociais. 

Louis Armstrong’s Black & Blues (2022)
6
Nota 6/10

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