Manas pertence a um grupo específico de filmes, motivados pela necessidade de informar o espectador a respeito de um tópico grave e urgente. Durante a apresentação do drama ao público na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a diretora Mariana Brennand explicou seu choque ao descobrir casos de violência sexual contra meninas na Ilha de Marajó, o que motivou a criação do projeto. Era preciso que mais pessoas soubessem da situação, e se mobilizassem contra os crimes silenciosos, pouco repercutidos pela mídia nacional.
Logo, pode-se falar em um interesse inerentemente didático e utilitarista. A primeira cena já nos apresenta a Marcielle (Jamilli Correa), garota de 13 anos, indagando a mãe a respeito do paradeiro da irmã mais velha. “Ela está melhor do que todos nós”, garante a mãe, pontuando que Cláudia encontrou um homem rico e foi levar uma vida com mais recursos, longe dali. O ideal da fuga pontua o horizonte dessas meninas para quem o único caminho de emancipação passa pela união com algum comerciante. Ainda meninas, sobem nas balsas e fazem programas com os passantes. São chamadas, portanto, de balseiras.
No entanto, a violência não se resume à prostituição. As protagonistas também experimentam estupros e importunação sexual por parte dos pais e irmãos — algo que não choca ninguém. Uma colega de Marcielle está grávida, a outra toma remédios para abortar. “Foi na balsa ou dentro de casa?”, as adolescentes se indagam. Desde as primeiras cenas com o pai (Rômulo Braga), Brennand evidencia o interesse sexual do patriarca com a menina. A sequência envolvendo uma espingarda (quando o cano da arma representa o pênis, e o tiro vale pelo orgasmo do pai) representa o incesto.
O longa-metragem busca se equilibrar sobre uma linha bastante delicada entre a sutileza e a obviedade. Ele deseja ser, ao mesmo tempo, cuidadoso com as atrizes mirins, mas também suficientemente claro para o espectador.
O longa-metragem busca se equilibrar sobre uma linha bastante delicada entre a sutileza e a obviedade. Ele deseja ser, ao mesmo tempo, cuidadoso com as atrizes mirins, mas também suficientemente claro para o espectador. A narrativa grita “violência” em cada cena, embora se recuse a transformar a miséria das protagonistas em espetáculo. Trata-se de uma obra que pensa unicamente em seus grandes temas, da primeira à última cena, ainda que embale tais preocupações em trechos tão clássicos quanto eficientes de realismo social.
Isso significa que a câmera dedica longos momentos à interação entre as irmãs, à colheita e o preparo do açaí, à novela discutida entre as amigas, e ao culto neopentecostal, quando se defendem as maravilhas da família patriarcal (“Se você tem algum problema em casa, aceite”, prega a pastora). A câmera mergulha na água durante as brincadeiras familiares, e depois imerge na bagunça das alunas, pouco preocupadas com o ensino em sala de aula. É fundamental à cineasta traçar uma crônica da vida padrão na Ilha de Marajó, misturando a adolescência comum às manifestações da masculinidade tóxica.
Logo, Manas defende que a violência infligida às meninas há gerações decorre de uma combinação entre a religião conservadora, a ignorância das garotas (que desconhecem a própria anatomia) e a falta de oportunidades. Muitas mulheres aceitam a convivência com seus algozes pela incapacidade de enxergar alternativas a esta vida. Para elas, isto é ser mulher: sujeitar-se ao pai ou namorado, deixar que encostem nos seios ou na “paca” em troca de algum dinheiro que lhe permita colocar comida na mesa, ou comprar um celular novo. Diversas jovens nem mesmo suspeitam que vivem uma agressão, tamanha é a naturalização dos abusos.
Obviamente, Brennand nunca filma explicitamente os atos de violência, preferindo o antes e o depois dos crimes. A câmera acompanha o semblante amedrontado de Marcielle ao adentrar a floresta com o pai, assim como a expressão perturbada quando volta. Filma a porta da balsa onde se encontra com Faguinho, e então o momento seguinte, em que o rapaz veste as calças. Foca-se tanto nas marcas deixadas pelo corpo quanto nos símbolos de uma subjetividade negada (a obtenção da carteira de identidade, que atravessa a narrativa na totalidade). O RG junta-se à compra da corda e à posse do revólver para compor a galeria de símbolos tão funcionais quanto evidentes.
As atuações são competentes e uniformes. O excelente Rômulo Braga consegue atribuir nuances à figura do pai que poderia facilmente se reduzir a um monstro. Pela voz doce, pelos instantes de ternura genuína, contrasta com a percepção maniqueísta do estuprador. Rodrigo Garcia segue ocupando papéis às vezes pequenos, considerando o tempo de tela, embora o ator roube todas as cenas em que aparece, uma vez mais. Faguinho brilha pelos tiques no sorriso, pela postura corporal. O intérprete desaparece em cada um de seus personagens de maneira exemplar.
Já Dira Paes, no papel da delegada que ajuda Marcielle, demonstra o cuidado e o tempo necessários, em cada palavra, para abordar com a menina seu histórico de violências sexuais. A própria Jamilli Correa, iniciante nas artes dramáticas, possui cenas fortes, comprovando tanto seu potencial como atriz quanto a capacidade da diretora em utilizar uma composição menos técnica a seu favor. Fátima Macedo, no papel espinhoso da mãe que tolera, de certo modo, a violência contra a filha, acerta ao minimizar emoções, evitando colocar-se em posição de vítima e de cúmplice.
Manas pode despertar alguns questionamentos quanto à imagem salvadora das forças policiais, que surgem tal qual um deus ex machina para resgatar as garotas. Ao menos, o alcance desta intervenção será reduzido, de maneira mais realista, nas cenas finais. Ele também pode soar meramente fatalista, enquanto aviso reiterado de que problemas existem neste lugar distante — e veja como a vida destas pessoas é sofrida, triste, miserável! A sucessão de sequências dormindo na cama com o pai, ou sonhando em partir com a balsa, aproximam o discurso de certo conformismo perigoso (do tipo “a vida destas meninas é assim mesmo, uma lástima, fazer o quê?”).
Felizmente, a conclusão encontra uma maneira de retirar Marcielle e sua irmã da condição de mártires de uma causa, ou de sofredoras exemplares para o esclarecimento do público. A saída adotada pelo roteiro se mostra tão improvável (em termos de verossimilhança) quanto funcional (no intuito de mostrar mulheres fortes, combativas, que não aceitam pacificamente a sua sina). Até o final, o drama oscila entre a responsabilidade de mostrar o mundo como ele é, e o direito de imaginar o mundo como poderia ser; ou entre constatar o problema e apresentar alternativas ao mesmo.