Em Mãos no Fogo, a imagem possui um grande poder. A personagem carregando uma câmera e um equipamento de som consegue entrar em locais proibidos, filmar segredos graves, revelar comportamentos que as pessoas filmadas desconheciam. O audiovisual constitui um catalisador de desejos e conflitos, uma máquina permitindo reatar ou romper definitivamente com desafetos. A diretora Margarida Gil atribui ao dispositivo uma função mágica, apesar de, ironicamente, concentrar-se num ato de captação bastante naturalista.
Isso porque a protagonista Maria do Mar (Carolina Campanela) chega ao casarão rico e antigo no intuito de preparar um documentário. Ela leva caixas e caixas de cabos, fitas, baterias, adaptadores, tripés, microfones, lentes. Esqueça o cinema enquanto prática oriunda da boa vontade e do talento: neste caso, ele representa um ofício trabalhoso, que se aprende e se desenvolve. Deriva de técnicas precisas, e pode transmitir diferentes pontos de vista, a partir do mesmo referencial. O diretora-dentro-do-filme escreve num diário, onde avalia e critica o próprio processo: “Muita fantasia”, “O que é a realidade?”.
A família responde a esta gravação com um misto de disponibilidade e rejeição. Desejam ser registrados, porém, gostariam de ter algum grau de controle a respeito da imagem obtida a partir de seus corpos e cotidianos. “Não acredite no que se diz. O mal está nos olhos de quem vê”, alerta a cozinheira. A governanta, apontando para o coração, declara: “O que está aqui dentro, não se pode filmar, nem ver”. A diretora declara seus objetivos utópicos: “Procuro filmar uma verdade que ainda há, uma essência que resiste ao tempo”. Gentis ou ariscos, estes personagens são sonhadores.
Mãos no Fogo constitui uma adaptação de A Volta do Parafuso, de Henry James. Mas a função de cuidadora cabe à mulher com uma câmera na mão, como se o dispositivo fosse capaz de prevenir abusos e revelar verdades.
É claro que o documentário de Maria do Mar constitui mero pretexto para introduzir o mecanismo metalinguístico. Nunca sabemos que projeto é esse, para quem precisaria entregar, a partir de quais condições, em quanto tempo. A jovem cineasta se hospeda na casa rica o tempo que quiser, filmando o que preferir. Gil condensa nesta figura uma ambição de onipotência (ela, também, se mostra uma sonhadora), para capturar o mundo sem impeditivos de nenhuma espécie. No final, tanto a heroína quanto os moradores participam ao jogo da câmera pelo prazer de filmar e ser filmados. Gostam de provocar o questionamento essencial: afinal, quem detém o poder entre estas duas instâncias?
Em se tratando de uma obra a respeito do controle (dos espaços, dos corpos e da subjetividade alheia), o longa-metragem adota uma estética de igual precisão, ao limite da artificialidade. Quando um peru sobe na mesa da cozinha, os olhos do animal são sobrepostos àqueles da governanta, em segundo plano, numa imagem longuíssima, vaidosa, rigidamente composta de modo a compará-los. O enquadramento de um corpo nu sobre a cama também se estende bastante, até ganhar um zoom-in progressivo rumo à personagem, posando para corresponder aos interesses da filmagem. Existe um componente de voyeurismo neste conceito.
O erotismo de possuir a pessoa através da imagem culmina na descoberta de outros registros audiovisuais efetuados dentro da casa, antes da chegada da heroína. Não surpreende ninguém que a família de fetichistas tenha conservado suas próprias películas, algumas delas de teor questionável. De repente, Maria do Mar precisa se acostumar à ideia de ter se tornado, à revelia, uma personagem do próprio processo. Como reagem os diretores, quando viramos a câmera para eles? A cineasta explora a contento as derivas e os limites do processo de apropriação e representação do outro.
Isso não a impede de esbarrar em algumas escolhas questionáveis, ou mais frágeis de direção. A sequência do peru foi claramente concebida para uma corrida frenética atrás do animal, no entanto, ele nunca foge de fato ao controle da cozinheira. O humor se dilui graças à montagem arrastada, sobretudo nas sequências focadas no charme do proprietário arrogante, ou nas escapadas da garota em direção à cidade, quando a narrativa perde a força do espaço e da clausura (por que o segmento do show possui duração tão longa?).
Mãos no Fogo constitui uma adaptação de A Volta do Parafuso, de Henry James. A base da premissa está presente: o tio cuidando de duas crianças órfãs, embora não tenha carinho por elas, e a presença de uma cuidadora assombrada por estranhos fenômenos noturnos. Aqui, em contrapartida, a perturbação adquire uma conotação explicitamente sexual (o fetiche masoquista da mulher), enquanto a visitante se converte, na verdade, na cineasta elaborando seu filme. A função de cuidadora, afinal, cabe à mulher com uma câmera na mão, como se o dispositivo fosse capaz de prevenir abusos e revelar verdades — caso em que possui função central numa casa repleta de mistérios.
Os atores se prestam ao jogo com plena ciência de não representarem personagens verossímeis, mas funções e simbologias. O rosto e o gestos torturados da babá (a quem cabe a metáfora das mãos no fogo, empregada no título), a caricatura de sedução oferecida pelo tio, e a comunicação provocadora da cozinheira brincam com elementos da fábula, onde os mesmos personagens que protegem podem também prejudicar. O discurso efetua seu cautionary tale a respeito das imagens, lembrando que podem ser perigosas e abusivas — exceto quando o criador consentir em também ser manipulado.
No final, restam na memória as imagens cuidadosamente iluminadas com uma fonte ao mesmo tempo natural, dura e pontual, aproximando o casarão português do imaginário do castelo literário. As cenas possuem seu próprio efeito “vinheta”, com bordas escurecidas, reforçando a aparência fantástica do conjunto. Trata-se de um estilo marcante, ciente de sua artificialidade, e conveniente para discutir representações que pensam a si próprias, numa adaptação literária transposta à vertigem da metalinguagem.