I started a joke
Which started the whole world crying
But I didn’t see
That the joke was on me
(1.) É evidente que Marcello Mio busca prestar uma grande homenagem ao ator Marcello Mastroianni. Ao escalar a atriz Chiara Mastroianni (cujos traços se assemelham bastante àqueles do pai) e a ex-companheira, Catherine Deneuve (mãe de Chiara), o diretor Christophe Honoré revisita os principais filmes da carreira do ator-principal-ausente, desde Noites Brancas até o clássico A Doce Vida, citado na abertura e na conclusão. Para quem procura o prazer cinéfilo (um jogo dos sete erros composto de inúmeras referências), o projeto constitui um prato cheio.
Além disso, o diretor procura mimetizar o estilo livre e onírico dos filmes de Fellini, o que inclui A Doce Vida, mas, principalmente, Oito e Meio. A personagem principal, Chiara, entra em crise existencial. Passa a vagar pelos sets de filmagem e as noites de Paris, tateando sua própria identidade à sombra dos genitores mais famosos. No caminho, encontra amigos, desafetos, outras pessoas de quem cuidar (o cachorro, o militar inglês), ou por quem ser cuidada (a mãe, os amigos Fabrice Luchini, Benjamin Biolay e Melvil Poupaud).
(2.) Ora, neste esforço rumo a certa magia delirante, própria às fábulas circenses de Fellini, Honoré se afasta tanto da melancolia dos anos 1960 quanto das práticas habituais de um cinema contemporâneo. Aproxima-se, em contrapartida, da sátira corrosiva ao mundo do espetáculo, focada na dura vida dos atores (mesmo em se tratando dos nomes mais prestigiosos e afortunados do cinema francês). Ótimos momentos decorrem de Chiara preparando-se para um teste de elenco, com ajuda da mãe, até a filha se virar a Deneuve e lhe perguntar qual foi a última vez em que a veterana teria passado por um teste para conseguir seus papéis.
Para além da nostálgica homenagem e da engraçada sátira, existe um aspecto amargo que atravessa Marcello Mio. Trata-se da ridicularização.
A cena envolvendo a cineasta Nicole Garcia, criticando o estilo de atuação de Chiara, permite ultrapassar a dimensão superficial do elogio para adentrar uma crônica palpável das artes dramáticas enquanto profissão. Os personagens, interpretando uma versão fictícia de si próprios, comentam projetos dos quais de fato participaram, e diretores com quem trabalharam de verdade. Recebem a possibilidade de criar para si próprios uma personalidade carente ou controladora fora das câmeras. O aspecto de segredo dos bastidores faz com que Luchini encarne uma visão fraterna e desesperada por afeto, enquanto Poupaud faz as vezes do colega intrusivo, excessivamente agressivo.
(3.) Por isso, para além da nostálgica homenagem e da engraçada sátira, existe um aspecto amargo que atravessa Marcello Mio. Trata-se da ridicularização. Voluntariamente ou não (imagina-se que não), Honoré acaba por transformar sua protagonista feminina em uma figura patética, descontrolada, uma mulher cuja depressão a aproxima da loucura. (O termo gaslighting vem à mente). Na trama, Chiara anda fragilizada, e decide assumir a imagem do pai. Veste um cabelo parecido, além de terno, calça e sapatos sociais. Insiste em ser chamada por Marcello, e começa a falar em italiano.
A heroína possui certa consciência de sua farsa, e volta a se comunicar em língua francesa quando necessário. No entanto, presta-se à humilhação patética de um programa italiano de televisão, sendo tratada pelos personagens e pelo próprio filme enquanto figura irresponsável, incapaz, fora de si. Há um abismo separando a hilária cena de abertura — quando Chiara Mastroianni faz as vezes de Anita Ekberg na Fonte de Trevi, diante de uma diretora histérica — e a sequência posterior, quando Chiara-Marcello retorna à fonte, sendo perseguida(o) por policiais. Na primeira vez, a crítica misturada com homenagem era evidente. Na segunda, o humor se esvai diante da insistência de Honoré de que estaríamos assistindo a um momento triste e profundo na vida da atriz.
(4.) Logo, Marcello Mio se assemelha a uma longuíssima piada que jamais chega à punchline, e insiste em não ser considerada como humor. Experimente alongar indefinidamente a premissa de uma esquete para testemunhar os rostos confusos e desagradáveis do público. “É uma farsa sem graça” afirma um diálogo, o que talvez se aplique à iniciativa em sua totalidade. Honoré, enquanto diretor e roteirista, parte de uma ideia ousada e criativa, porém nunca sabe ao certo para onde deseja levá-la. Afunda-se conforme acumula indecisões de tom (o número musical de Deneuve, nos minutos finais) e instantes de infantilização da protagonista.
Parte da experiência poderia se resumir a um longo episódio de 10%, a divertida série francesa em que atores encarnam versões de si próprios — mais histriônicos, mais solitários, mais irresponsáveis, ao gosto de cada episódio. No entanto, outra parte remete ao cineasta pedindo ao espectador que leve esta pequena traquinagem a sério, enquanto homenagem consistente e investigação profunda de uma psique perturbada. É preciso escolher entre abordar este ponto de partida rocambolesco pelo viés da melancolia, da crônica de costumes ou da comédia screwball — os três juntos não convergem.
(5.) Além disso, a comédia dramática representa o travestimento de forma bastante incômoda. Chiara, a personagem, jamais se identifica como trans, mas o roteiro passa a encarar as vestes tipicamente masculinas enquanto algo afrontoso, vulgar, burlesco — uma tentativa de enganar as pessoas ao se passar por aquilo que não é. A percepção de um indivíduo como alguém de outro sexo se torna motivo de conflito, e gesto de inadequação. Chiara veste-se como homem porque possui problemas de saúde mental (rumo à conclusão, os amigos desconfiam de suas tendências suicidas quando a veem se dirigindo ao mar).
Por isso, é possível enxergar um caráter preconceituoso e transfóbico na abordagem — lembrando que a transfobia não afeta apenas pessoas trans, comunicando-se com uma percepção binária e normativa de adequação do corpo e da identidade. Chiara, vestida como Marcello, torna-se engraçada, ofensiva, absurda e equivocada, necessitando de uma intervenção urgente. Ela nunca é percebida de maneira comum, ou como alguém que se encontra no travestimento, somente uma figura deslocada. A imagem de uma sexualidade diferente se converte em máscara para o real — e a realidade significaria, neste caso, a conformidade ao gênero biológico.
É improvável que Honoré tenha pensado nestes aspectos, ou se munido de intenções LGBTfóbicas ao criar seu longa-metragem. No entanto, o problema reside justamente no fato de não ter cogitado as implicações óbvias de sua iniciativa, escondendo-se atrás da picardia de emular Fellini e brincar com a imagem de Marcello Mastroianni. Ora, não estamos mais nos anos 1950-60, e a representação dos indivíduos (de seus corpos, de sua subjetividade) passa por códigos distintos. Marcello Mio oscila com facilidade entre a viagem doce e lúdica e a homenagem desgovernada, de gosto duvidoso. Por trás de cada pequeno sorriso despertado pelas interações de Chiara-Marcello, paira a dúvida incômoda se deveríamos, de fato, estar rindo deste teatro.