Margeado (2025)

Rumo a lugar nenhum

título original (ano)
Margeado (2025)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
150 minutos
direção
Diego Zon
elenco
Danilo Andrade, Verônica Gomes, Eliane Correia, Antônio Pitanga, Etien Khouri, Elídio Netto, Suely Bispo, Margareth Galvão, José Augusto Loureiro, Lorena Lima, Luciano Chirolli
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

A imersão em Margeado implica na necessidade de abraçar uma série de artificialidades voluntárias, propostas pelo diretor Diego Zon. Embora a sinopse sugira uma narrativa linear, a respeito de personagens deslocados de suas terras após o rompimento de barragens, o discurso socioambiental fica em segundo plano em relação às escolhas estetizantes de linguagem cinematográfica. Em outras palavras, o estilo posado e operístico chama muito mais atenção do que a lama contaminando as águas.

Um dos recursos curiosos reside nos diálogos. Ao longo de 150 minutos, os personagens se comunicam essencialmente por meio de bravatas, frases de efeito e falas explicativas, quando dizem um ao outro coisas conhecidas por ambos, apenas para trazer a informação ao espectador. Duas mulheres parecem falar sozinhas (ou se expressam diretamente ao público, embora o olhar esteja perdido em algum ponto distante), palestrando a respeito do desastre ocorrido na região. Somos colocados na posição do casal de turistas que viaja à cidade e recebe explicações pausadas e ex-ces-si-va-men-te articuladas de uma guia local.

“Um homem aqui lançou-se quatro vezes às águas”, ela explica, num português raro para o registro oral. “O tempo passa e amansa tudo isso”, diz outra frase. “Eles não podem vir aqui e acabarem com a nossa memória!”, decreta Yara (Verônica Gomes). “E agora, quem são os heróis, as heroínas?”Enquanto a gente tiver sangue, a gente há de dar de beber a essa árvore”. “Não se abandona o horizonte”. “Nós não estamos aqui para esquecer, estamos aqui para lembrar”. “Gostam de festa para colocar na gente a saudade do futuro”

Yara e Dingue não aparentam saber para onde vão, nem o que pretendem fazer. O filme os acompanha na indecisão. As cenas chamam mais atenção à verve controladora e vaidosa da direção do que a um discurso político-social. 

Logo, os personagens se tornam veículos de grandes mensagens e posicionamentos políticos, ou ainda de uma poesia literária democraticamente distribuída, posto que todos se expressam de modo idêntico. Trata-se menos de subjetividades distintas e bem definidas do que de porta-vozes de uma causa, representantes de uma temática. O extenso monólogo oferecido a Antônio Pitanga encontra eco adiante num segundo monólogo; o aspecto pausado na comunicação de Dingue (Danilo Andrade) se repete nos colegas de trabalho, na irmã, no vendedor do comércio local.

Isso decorre de um problema flagrante de ritmo em Margeado. Cada cena se estica para muito além das interações e informações, deixando a impressão de um filme inteiramente em câmera lenta. Não se trata apenas de uma escolha da montagem de Diego Zon e Joana Baptista, mas da própria encenação: a verve inflamada e declamatória dos diálogos se contrasta com corpos inertes, desafetados, de expressividade mínima. Dingue fala algo, espera longos segundos até receber a resposta monossilábica, e mais alguns segundos se passam antes de oferecer a tréplica. 

Os corpos estão posados em locais específicos do enquadramento, esperando os len-tís-si-mos movimentos de câmeras que deslizam pelo braço de um ao braço de outro, enquanto os atores esperam pelo fim da coreografia da imagem. Este é um cinema em que o real precisa se moldar, distorcer e acomodar às necessidades profundamente controladoras da mise en scène — nunca o contrário. Fabrica-se uma maneira de falar, andar, se deslocar, manifestar indignação que os aproxima de marionetes de uma causa maior (a temática do desastre ambiental). No entanto, nos rostos plácidos e imperturbáveis, é difícil detectar desejos e pulsões.

Em paralelo, não se compreende algumas escolhas de direção, fotografia e montagem. Os lentos zoom-ins e zoom-outs parecem ocorrer a esmo, em momentos não claramente delimitados em termos conceituais (a primeira aproximação nas garrafas d’água, ou adiante, quando os trabalhadores almoçam). O primeiro close-up, propriamente dito, surge por volta de 110 minutos de narrativa. A insistência do caráter melódico ameaça converter a obra num musical, porém jamais se concretiza. Os tempos se estendem às vezes pelo simples prazer da dilatação temporal contemplativa (a partida do cantor no funeral, rumo à escuridão).

Os personagens soam igualmente herméticos, de difícil compreensão ou identificação. Dingue nunca responde ao certo para onde vai, e parece ignorar sua destinação. No entanto, o final insiste que havia um plano preciso — mesmo que o rapaz decida parar, por tempo indefinido, numa fábrica onde lhe oferecem emprego. O fim oferecido a Yara soa misterioso, ou apenas negligente pelo roteiro, dependendo do ponto de vista. A respeito de mistérios, deveríamos criar certo suspense quanto ao conteúdo da trouxa que o protagonista carrega consigo? Por que se todos calam diante de perguntas simples, para as quais têm as respostas? 

Nota-se a predileção por uma vertente quase caricatural do cinema, que dificulta o acesso a informações e sentimentos, não por que estes sejam complexos e difíceis de acessar, mas pela crença na nobreza da incomunicabilidade, na aridez nos gestos. Filmes profundamente humanos e belos como Arábia e Suçuarana, com os quais Margeado estabelece algum parentesco, superaram o desejo de impor a forma ao humanismo. Entretanto, no exemplar capixaba, uma simples pergunta como “Para onde está indo?” resulta num olhar vidrado e emudecido do ator, como de praxe no cinema de autor que ainda enxerga virtudes em esgarçar ao máximo a malha das interações humanas.

Na maior parte da trama, Yara e Dingue não aparentam saber para onde vão, nem o que pretendem fazer. O filme os acompanha na indecisão — vide a inserção e desaparecimento do personagem de Pitanga; a lamúria musical no ônibus; a fantasia no casebre de madrugada; o episódio da febre do macaco, ou a utilização do casal libanês ao final. Acumulam-se cenas que pareçam interessantes ou poéticas em si, ainda que teimem em se comunicar umas com as outras, ou integrar um conjunto coeso. Poderiam ser reordenadas em praticamente qualquer ordem, sem prejuízo ao resultado. Terminam por chamar mais atenção à verve controladora e vaidosa da direção do que a um discurso político-social. 

Margeado (2025)
3
Nota 3/10

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