Quem tem o direito de decretar a morte de uma cidade? De se virar aos habitantes e dizer: “Saiam, levem as suas coisas, pois este local será destruído?”. Em Memórias da Chuva, o cineasta Wolney Oliveira resgata um episódio trágico da história recente do Ceará: a decisão de evacuar e inundar Jaguaribara para a construção da barragem Castanhão. Na intenção de aumentar o fluxo de água em grandes complexos industriais ao norte do Estado, o município foi destruído, sob iniciativa, entre outros, do ex-governador Tasso Jereissati.
Haveria diversas maneiras de abordar este episódio. Talvez a mais evidente fosse a denúncia ambiental, apontando dedos, gritando contra o descaso das autoridades. Muitos criadores compreendem o “cinema político” enquanto transformação da obra em panfleto para ampliar o alcance de um discurso. Felizmente, o documentário apresenta um olhar mais complexo, de vertente tanto historiográfica quanto sociológica e estética. O posicionamento político se torna evidente, sem precisar verbalizar o pensamento através de narrações em off do autor, nem letreiros didáticos: o cineasta confia no significado de suas imagens.
O cineasta investiga as vantagens e desvantagens do deslocamento forçado. Analisa os ganhos políticos e financeiros da agroindústria. Há muito em jogo para além da nostalgia de um local que não existe mais.
Isso porque havia uma quantidade expressiva de materiais de arquivo à disposição. O mais importante deles reside numa gravação efetuada pelos próprios moradores quando a decisão da barragem se tornou irrevogável. Eles tampouco se prestaram aos gritos e lamentos: preferiram fazer reuniões, exigências… e imagens. Preferiram, enquanto cineastas involuntários de verve intuitiva, filmar como as pessoas viviam por ali. Por isso, há registros das senhoras sentadas em frente às casas, cortes de cabelo no salão local, crianças brincando nas águas.
A autoria coletiva do filme-dentro-do-filme diz muito mais sobre os conceitos de união e coletividade do que qualquer explicação posterior acerca do Jaguaribara. Os cidadãos realizaram esta imagem para eles mesmos, e não para os olhares alheios. Tal qual um álbum de retratos, queriam imortalizar a vida de uma cidade moribunda, por decisão do Estado. Acreditaram, portanto, no potencial simbólico do audiovisual em driblar o desaparecimento, eternizando pessoas e acontecimentos em representações que poderão ser vistas muito depois da vida dos mesmos. O cinema conta a morte.
Diante destas captações preciosas, Oliveira propõe diálogos. Ele busca os indivíduos gravados no vídeo de 2001, para saber o que pensam, hoje, da nova cidade construída a 60 km da original, com outras proporções, outra arquitetura e outro valor histórico. Estão contentes? Decepcionados? Saudosos, ou enraivecidos? A montagem de Tiago Therrien, junto ao cineasta, capta tanto as impressões positivas da municipalidade planejada quanto as lembranças negativas. Investiga as vantagens e desvantagens do deslocamento forçado. Analisa os ganhos políticos e financeiros da agroindústria.
Por isso, há muito em jogo para além da nostalgia de um local que não existe mais. Tal qual um bom projeto de pesquisa, confronta as vozes dos moradores e das autoridades, dos engenheiros locais (que propuseram alternativas viáveis ao Castanhão) e os especialistas do Estado. Decide mergulhar a câmera na água para captar os restos inundados das casas; e voar pelos céus em drones para compreender a extensão da seca e as dimensões do projeto. Acompanha a exumação de corpos, e a transferência dos restos mortais à cidade nova (“Os mortos são os primeiros moradores da Nova Jaguaribara”, comenta de maneira tragicômica a imprensa regional). Escuta moradores, religiosos, sociólogos.
O projeto vai além. A tese do desenvolvimentismo e do milagre econômico se encontra nas gravações do passado, em janela mais próxima do quadrado, com textura de VHS — “uma boa câmera para a época”, segundo um habitante. A antítese, da destruição da municipalidade para ganhos econômicos e hídricos ínfimos, se encontra nas captações contemporâneas, de um digital profissional em janela mais retangular. Resta, portanto, a antítese deste discurso dialético.
Assim, o terceiro ato (construído de modo cíclico, posto que parte das imagens do término haviam iniciado a narrativa) se foca no reencontro físico dos ex-moradores da Velha Jaguaribara com as reminiscências locais. Visto que as terras secaram, as estruturas voltaram a aparecer. Os moradores identificam as ruas, seus terrenos, a banheira de casa. “Aqui ficava o meu quarto, aqui ficava o quarto do meu filho”, apontam” Faltava precisamente a imagem do vazio, da cidade seca e reconstituída, para se consolidar a inutilidade daquele abandono.
As casas caíram, os moradores partiram. A terra inundou, secou, permaneceu ali. Este segmento, com visível preocupação estética em enquadramentos, trilha sonora e ritmo fluido, transmite uma curiosa forma de resistência da própria Jaguaribara, enquanto personagem principal, recusando-se a ir embora. Os habitantes, hoje na condição de turistas na terra onde cresceram, assistem novamente às gravações antigas, de sua adolescência. Comentam a esperança de antes, com certa tristeza. Esboçam um sorriso amarelo diante da crença antiga de que a situação melhoraria.
Memórias da Chuva não se limita à exposição nem ao comentário de um episódio trágico da gestão ambiental e patrimonial do Ceará — e nacional, em virtude do endosso do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele se converte num exercício de análise da imagem, deixando que a cartografia do presente refute, por si própria, a geografia do passado. Revisita o local “que não existe mais”, enquanto ressuscita, via material de arquivo autobiográfico, as criações de antigamente. Opõe a imagem de si à imagem do outro; a gravação concebida sem pretensões artísticas, em 2001, com a filmagem de pretensão cinematográfica em 2023.
Ao invés de discursar em flashbacks a respeito de um momento apartado do presente, faz questão de representar Jaguaribara enquanto história em andamento, um extermínio cujo luto nunca foi plenamente efetuado. Potencializa a compreensão do caso ao acompanhar a destruição de uma cidade ao vivo, conforme seguimos a mudança dos móveis, a partida das pessoas, as escavadeiras destruindo décadas de História no espaço de poucas horas. Há uma diferença brutal entre falar sobre algo que aconteceu e revelar a catástrofe ocorrendo diante dos nossos olhos. Neste aspecto reside a grande força do documentário.