Edmond Murray (James McAvoy) é um pai ruim. Desde o divórcio com a esposa, ele conversa muito raramente com o filho pequeno, e chega a se esquecer do bate-papo marcado para o Skype, ou dos presentes de aniversário. O roteiro de Meu Filho (2021) faz o possível para compreender os motivos deste homem: em primeiro lugar, ele é descrito como um sujeito trabalhando na indústria petrolífera, em “países perigosos” onde não seria “apropriado levar uma criança”.
Em outras palavras, um indivíduo afastado da família contra a sua escolha, apesar de provedor, capaz de dar ao garoto tudo de que ele precisa. Em segundo lugar, o longa-metragem efetua um esforço impressionante para transformar o homem sem qualidades num herói admirado pelo garotinho, pela ex-esposa e por todos ao redor.
O drama consiste num reposicionamento de marketing do pai ausente: ao invés de solicitar que passe mais tempo em casa, dando carinho e atenção ao pequeno, oferece um atalho mais sedutor ao macho ressentido: a possibilidade de se descobrir um justiceiro implacável contra bandidos perigosos, protegendo o menino enquanto salva o resto da comunidade de atos de sequestro e pedofilia.
O empoderamento do homem branco, cisgênero e heterossexual ocorre pela conversão ao martírio, ao sacrifício e ao justiçamento providencial. Mais fácil do que dar amor seria desmantelar um cartel de tráfico de crianças. Às mães, cabem os cuidados do lar, e aos pais, a proteção da alcateia. Voltamos a tempos antigos.
No entanto, o início do projeto aponta para um drama bastante satisfatório. Durante cerca de quarenta minutos, a narrativa se concentra na surpresa de Edmond e Joan Richmond (Claire Foy) ao serem avisados do desaparecimento do filho num acampamento de férias. Este trecho inicial se concentra na psicologia de ambos os personagens, combinando os sentimentos de culpa, raiva e ressentimento. Ela se volta contra o ex-marido na busca por responsáveis, e este, contra o novo namorado dela, que cria o garotinho de sete anos há mais tempo do que o pai biológico.
Seguem as cenas esperadas de crises de choro e raiva, gestos de descontrole na delegacia, grupos de busca gritando o nome do pequeno floresta adentro, ou o pai cheirando objetos do garoto melancolicamente e a mãe dormindo mal, com a ajuda de remédios. Estes não seriam elementos propriamente inovadores, ainda que soem condizentes com o estado crítico em que se encontram os adultos.
Além disso, a fotografia de Éric Dumont aborda a fase de descoberta da tragédia com uma elegância implacável, glacial. A janela em scope abriga amplas imagens nubladas e silenciosas da paisagem cercando o acampamento, enquanto dentro das casas, pequenos abajures ou lâmpadas de cômodos adjacentes se encarregam de iluminar, apenas o suficiente, os rostos de Edmond e Joan, ou ainda do policial Roy (Gary Lewis).
O montador Loïc Lallemand permite que as cenas se estiquem ao limite do contemplativo, do etéreo e misterioso: paira uma bela sensação de impotência nestas figuras sentadas em suas casas, sem saber a quem recorrer. Na parte inicial, o diretor Christian Carion embala um drama clássico na embalagem de um polido filme “de arte”, do tipo que integraria festivais prestigiosos.
Ora, a mise en scène sai dos trilhos de maneira rápida e espetacular, apostando num filme completamente diferente. Uma vez estipulada a situação e os traumas de cada um, Edmond se transforma num pai-herói, descobrindo habilidades de investigação e combate inerentes à sua masculinidade primitiva. O roteiro facilita esta tarefa de tal modo que se aproxima da comédia: o pai arrependido observa dois vídeos no celular da esposa e descobre uma pista minúscula, que passou despercebida pelos policiais. Ele segue o indício improvável, que o conduz imediatamente no encalço dos inimigos.
Edmond se transforma num pai-herói, descobrindo habilidades de investigação e combate inerentes à sua masculinidade primitiva.
Pessoas operando um esquema ultrassecreto deixam portas da residência abertas e os carros ligados em frente ao imóvel, enquanto objetos penetrantes se multiplicam ao redor do herói, para que possa esmagar os adversários com facilidade. Pés-de-cabra, pedaços de cano e extintores de incêndio estão à disposição pelo chão, enquanto as tábuas de madeira do chão de uma casa não fazem barulho.
O mundo é ajustado para Edmond, elaborado na intenção de facilitar a redenção paterna. No caminho, o sujeito transborda o instinto vingativo numa incômoda cena de tortura, interpretada pela narrativa como excesso de paixão pela família, e raiva contra os sujeitos malvados. Enquanto ele se fortalece pela demonstração de violência, Joan se enfraquece numa cama, convertida numa espécie de zumbi dopado de medicamentos e de um discurso fatalista.
O menino, por sua vez, resta em posição de coadjuvante completo, beirando a figuração: Carion jamais se importa com a saúde física ou mental da criança reduzida a um corpo inerte. Não se trata dele, afinal. A ascensão do pai ocorre em detrimento do próprio filho.
Muito se comentou a respeito do processo criativo: a exemplo do original francês, a refilmagem teria trabalhado com um protagonista improvisando em cena. Isso significa que James McAvoy não recebeu o roteiro com seus diálogos, ao contrário dos colegas de cena, o que permitiria reações espontâneas aos gestos dos colegas.
O procedimento poderia resultar em interações mais cruas, no entanto, a descrição desta ferramenta de trabalho (seria o método Meisner?) parece romantizada pela imprensa e pelos canais de distribuição. As cenas intensamente decupadas e fragmentadas dificultam a impressão de um desconhecimento de MacAvoy em relação ao conteúdo das cenas, e apenas as falas pouco expressivas do ator indicam uma falta de condicionamento prévio.
Em outras palavras, o intérprete parece ter sido pouco preparado ao acaso, ao invés de intensamente preparado à imprevisibilidade, o que são coisas completamente diferentes. Os acessos de violência de Edmond e a busca pelos vilões em corredores sombrios tornam impossível qualquer forma de movimentação espontânea do ator.
Quanto ao resto do elenco, bons nomes oferecem um trabalho opaco: Claire Foy desenvolve um estranho tique de cobrir os lábios com os dedos; Gary Lewis nunca consegue justificar o abandono repentino do caso na cena abrupta que dispara o mecanismo da ação. Afinal, o filme tampouco é sobre eles: Carion cria um pequeno problema (um pai em crise) apenas para vender uma solução espetacular, capaz de superar em muito a carência inicial (ele é um pai tão dedicado que arrisca a vida em nome do pequeno). No mundo simbólico das ficções, falta de afeto se resolve na bala.