Môa, Raiz Afro-Mãe (2022)

O ícone misterioso

título original (ano)
Môa, Raiz Afro-Mãe (2022)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
100 minutos
direção
Gustavo McNair
com
Gilberto Gil, Letieres Leite, Lazzo Matumbi, Vovô do Ilê, Baiana System, Alberto Pitta, Negrizu, Márcia Short, Gabi Guedes
visto em
Cinemas

Em primeiro lugar, convém sublinhar que este documentário não constitui um filme biográfico, no sentido estrito do termo. É claro que o artista Môa do Katendê costura a narrativa do começo ao fim, tornando-se protagonista da trama. No entanto, o projeto evita a tradicional busca das origens por sua genialidade e talento, do tipo que efetuaria um passeio pela infância, os amores, as conquistas, através de uma sequência de falas elogiosas (que aparecem, neste caso, apenas em momentos pontuais).

O diretor Gustavo McNair possui uma abordagem mais sintomática. Ele utiliza seu protagonista enquanto exemplo de um movimento maior, responsável por condensar as raízes africanas, as referências culturais norte-americanas e a religiosidade sincrética brasileira numa única forma de expressão. Portanto, Môa não seria o único, o primeiro, nem necessariamente o melhor, porém um representante notório de um grupo sociocultural que interessa aos criadores abordar. 

Isso significa que o longa-metragem está menos preocupado em servir como homenagem ou prova de dados e materiais de arquivo, do que em oferecer uma análise histórica e cultural dos movimentos de matriz africana no Brasil. Neste aspecto, o resultado se mostra fortíssimo. Entre as falas de antropólogos, cantores e estudiosos da religião, traça um panorama amplo e complexo de um país formado pelos negros, decorrente da cultura e do conhecimento dos negros, porém que aspira a um ideal branco e racista, próximo do colonizador europeu.

O longa-metragem está menos preocupado em servir como homenagem a Môa do Katendê do que em oferecer uma análise histórica e cultural dos movimentos de matriz africana no Brasil.

Através de uma montagem fluida (e excessivamente picotada na sequência inicial), estuda-se a influência da umbanda e do candomblé nas comunidades de estados nordestinos, o desenvolvimento dos afoxés baianos e a competição entre eles, a mistura de referências e interpretações de cada um. Môa e os demais participantes são vistos enquanto artistas na acepção mais ampla do termo: cantam, dançam, compõem, fazem artesanato. A existência pública destes indivíduos constitui uma afirmação política em sua negritude, pelas origens periféricas de tantos praticantes do afoxé, e pela resistência face às pressões conservadoras.

Neste sentido, impressiona a tranquilidade com que os entrevistados transmitem uma quantidade impressionante de informações e reflexões. Longe da postura de acadêmicos, de falas engessadas e pomposas, eles dialogam com o diretor como se estivessem diante de um amigo próximo. Trata-se de um grupo com óbvios conhecimentos do tema, ainda que sem vaidades: eles manifestam amor pelo tema, e uma forma de cultura internalizada, orgânica, dispensando as listas de datas, dados e nomes. Este é um filme destinado a pensar os movimentos culturais, ao invés de meramente atestar sua existência.

No entanto, quem espera conhecer as melhores músicas de Môa do Katendê, seus principais sucessos populares, os trabalhos manuais de miçangas ou os posicionamentos políticos, pode ficar um pouco frustrado. Embora o filme fuja habilmente das armadilhas do roteiro-Wikipédia, ele oculta até demais fatores que parecem fundamentais à subjetividade do protagonista. Fica a impressão de que, na intenção de se concentrar numa visão macro, a respeito de comunidades e sociedades em detrimento de individualidades, foi preciso apagar qualquer conflito na jornada do artista.

Isso significa que os entrevistados fazem menção a dilemas pessoais que nunca entenderemos de fato. Apaixonado pela Bahia, onde nasceu e foi criado, Môa saiu durante anos do Estado e foi viver em outras partes do país, recusando-se a voltar. Por que exatamente? O que houve nesse período? Os letreiros fazem menção ao “desaparecimento” do artista durante vários anos. Adiante, avisa-se que ele “fez as pazes com o Carnaval” e retornou. Ora, o que motivou tamanha recusa em retornar? Como alguém no auge de sua liderança do Afoxé Badauê decide se retirar por completo?

As dúvidas persistem. Um colega afirma que Môa estava “num momento de luta”, e que possuía “conflitos espirituais”. Do que se trata? Se isso alterou sensivelmente os rumos pessoais e profissionais do capoeirista durante vários anos, certamente mereceria um detalhamento por parte dos autores do documentário. Outro entrevistado declara que Môa teria acertado contas de seus conflitos amorosos através da música. Que conflitos eram esses? Uma filha aparece em cena nos instantes finais, sem entendermos a relação específica tecida entre pai e filha. 

Outras falas citam que “a Bahia está passando por um momento difícil”, desrespeitando os mais velhos e a tradição. Esta crítica visa artistas específicos? Políticos? Novos grupos culturais? É curiosa essa tendência, especialmente na segunda parte da narrativa, a lançar pequenas indiretas e deixar pairar alfinetadas em quem quiser se identificar. Nenhum documentário é obrigado a se debruçar sobre a vida íntima de seus retratados, é claro. No entanto, como os próprios autores escolheram mencioná-la, seria importante ir ao fim de sua perspectiva política.

Resta a impressão de uma obra corajosa na análise antropológica, sociológica e histórica de nossas raízes africanas, porém acanhadíssima na esfera política mais propriamente dita. O texto tem receio de incomodar as vozes opositoras, de nomear desafetos ou inimigos, e apontar movimentos contrários àqueles defendidos pela direção. Até por isso, quando se avisa do assassinato de Môa, em 2018, por um bolsonarista fanático, o episódio soa atenuado e mal contado: Môa sempre se posicionou na política partidária? Havia descido às ruas em eleições anteriores? O que ocorreu naquele dia, especificamente? Mais um mistério.

Em conclusão, Môa, Raiz Afro-Mãe se mostra um filme tão afetuoso em seu abraço à cultura, arte e religião, quanto melindrado na hora de apontar os mecanismos, grupos e ideologias que ameaçam a perpetuação dos afoxés, do candomblé e da cultura de origem africana no Brasil. Ao contrário de tantas obras indignadas contra uma força que não sabem ao certo nomear, este filme conhece exatamente os segmentos opositores, mas prefere fingir que não seriam importantes à análise do contexto. Ora, não existe luta política sem compreender o que existe do lado de lá.

Môa, Raiz Afro-Mãe (2022)
6
Nota 6/10

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