Ninguém Sai Vivo Daqui (2023)

O espetáculo do sofrimento

título original (ano)
Ninguém Sai Vivo Daqui (2023)
país
Brasil
gênero
Drama, Horror, Histórico
duração
86 minutos
direção
André Ristum
elenco
Fernanda Marques, Augusto Madeira, Andréia Horta, Rejane Faria, Naruna Costa, Aury Porto, Arlindo Lopes, Bukassa Kabengele
visto em
Cinemas

Ninguém Sai Vivo Daqui constitui um filme-denúncia. Ele busca gritar, através do tema e das escolhas estéticas, os absurdos ocorridos no hospital psiquiátrico Colônia, em Minas Gerais, nos anos 1970, quando pelo menos 60 mil pessoas foram mortas devido às técnicas de tortura e maus-tratos infligidos aos pacientes. Embora muitos deles não possuíssem diagnóstico de problemas relacionados à saúde mental, foram enviados por familiares que buscavam afastar parentes indesejados. 

Para esclarecer seu posicionamento em defesa das vítimas, e contra os dirigentes da instituição, o diretor André Ristum recorre ao maniqueísmo exemplar. É preciso que os internos sejam muito gentis, pacíficos e virtuosos, enquanto os enfermeiros e inspetores se convertem em vilões dignos de uma animação da Disney. Augusto Madeira encarna, pela enésima vez, a figura do cafajeste-mor (e o faz muito bem, diga-se de passagem), molestando, agredindo, torturando e chantageando a pobre Elisa (Fernanda Marques), internada na Colônia por engravidar fora do casamento. Seu diagnóstico “oficial”: esquizofrenia.

Logo, ela reclama, esbraveja que não deveria estar ali. Protesta, em vão, contra médicos e assistentes. Assemelha-se a tantos personagens injustamente tratados em instituições (em A Troca, Garota Interrompida, etc.), que lutam sozinhos-contra-o-mundo, numa indignação facilmente compartilhada com o espectador. Ao longo de décadas, ninguém teria escapado desta letal prisão em Barbacena, porém nossa heroína, a escolhida, aparentemente mais corajosa e esperta do que todos, tentará a fuga perfeita — cujo funcionamento se revela bastante simples, afinal.

Ninguém Sai Vivo Daqui jamais se resolve entre o drama e o terror, ou melhor, entre abraçar um realismo social elegante, e mergulhar nas possibilidades disruptivas do cinema de gênero.

A estética acompanha tamanho ato de bravura. Baseado na série Colônia, e preservando imagens da mesma, o longa-metragem aposta num preto e branco contrastado, destinado a transformar os espaços internos numa masmorra sombria. Os pacientes engolem comidas nojentas em refeitórios escuros, e descansam em dormitórios onde frequentemente aparecem cadáveres banhados em poças de sangue, provocando espanto nulo nos dirigentes. Eles apenas fecham os sacos mortuários, e segue-se o dia. O título já nos avisava da crueldade deste espaço, repetida insistentemente, cena após cena.

No entanto, Ninguém Sai Vivo Daqui jamais se resolve entre o drama e o terror, ou melhor, entre abraçar um realismo social elegante, e mergulhar nas possibilidades disruptivas do cinema de gênero. Por um lado, as cenas internas se mostram tão escuras que sabotam o trabalho dos atores. No caso do elenco negro, as expressões praticamente se perdem. Se existe um problema ético e moral grave, no cinema brasileiro contemporâneo, ele reside na direção de fotografia pensada apenas para a pele branca, enquanto aceita subexpor a pele negra.

Por outro lado, a estilização nunca se converte em algo asqueroso, provocador em termos de imaginação ou das possibilidades de acontecimentos na escuridão — como seria propício ao horror. Os significados se encontram numa superficialidade imediata: sabe-se exatamente quem faz o quê, onde, com quem, como, e com quais objetivos. O espectador nunca é levado a refletir, deduzir ou questionar comportamentos, pois toda a reflexão foi feita por nós, sendo mastigada didaticamente nos diálogos e ações. Sabemos exatamente quem odiar, e de quem ter piedade.

A sucessão ininterrupta de calamidades se alia à dificuldade de resolver conflitos ou aprofundar psicologias. O encontro do filho adulto com sua mãe, presa há décadas na Colônia, ocorre com tamanha rapidez e facilidade que beira o humor involuntário. A morte de alguns personagens importantes, e sua conversão em fantasmas caridosos (do tipo que observa os vivos com olhos doces e gentis, tal qual nos dramas espíritas) também se desenvolve com velocidade inverossímil. O que dizer da chegada abrupta do padre?

Ao espectador, resta a tarefa difícil de torcer por personagens-vítimas que mal conhecemos. O longa-metragem ostenta um elenco dos sonhos: qualquer filme com Rejane Faria, Naruna Costa, Andréia Horta, Augusto Madeira e Bukassa Kabengele chama atenção por si próprio. Fernanda Marques se dedica com intensidade, ainda que os atores hesitem entre o nível de dramaticidade de uma telenovela e a fuga do realismo inerente à fantasia. Os trejeitos de Rejane Faria com os lábios, e a composição de tantos coadjuvantes com “cara de loucos” transparecem a mão pesada deste retrato humano.

Quais sentimentos Elisa nutre pelo bebê que carrega no ventre? Ela realmente amava o pai desta criança? Qual era a relação com os pais ricos e dominadores antes deste evento? A jovem possuía planos, ambições? Nada disso é esclarecido ou trabalhado ao longo da trama. Se nem a heroína adquire o mínimo de complexidade, imagine então os coadjuvantes, reduzidos à caricatura do problema de saúde mental. Mesmo no clímax, diante de uma cena de ação e luta, Elisa se mostra estranhamente inerte, observando seu agressor e esperando para ser atacada. 

Muitas cenas têm difícil justificativa em termos de mise en scène, ou da maneira como se agenciam com as demais. Soam como um ajuste forçado, e pouco harmônico, do conteúdo da série, priorizando os “melhores momentos” — na verdade, os instantes mais catárticos, onde todo sentimento se exterioriza nos corpos torturados, abusados, assassinados. O ponto de vista parece desfrutar deste calvário de maneira bastante conformista, caso em que a pretensa denúncia se aproxima perigosamente do fetiche da miséria alheia.

Ninguém Sai Vivo Daqui (2023)
3
Nota 3/10

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