No Cemitério do Cinema (2023)

O peregrino das imagens

título original (ano)
Au Cimetière de la Pellicule (2023)
País
França, Senegal, Guiné, Arábia Saudita
linguagem
Documentário
duração
93 minutos
direção
Thierno Souleymane Diallo
com
Thierno Souleymane Diallo
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

No cenário cultural brasileiro, especialmente pós-pandemia, tornou-se frequente o medo de falarmos do cinema no passado, como uma memória saudosa e distante. Lembra quando existiam salas de cinema? Quando as pessoas saíam de casa, pagavam para ver filmes no escuro? Agora, dá pra ver em casa… Em diversas cidades afastadas dos grandes centros urbanos, esta já é uma realidade há tempos. O mercado ainda discute a melhor maneira de convencer as pessoas a frequentarem, novamente, o palco central da experiência cinematográfica.

No Cemitério do Cinema expande esta situação ao âmbito nacional, analisando o caso da Guiné. O jovem Thierno Souleymane Diallo se indigna com o total descaso de seu país, e das nações africanas vizinhas, com a produção, a exibição e distribuição de filmes. Conversa com os anciãos de cada aldeia, perguntando se já foram alguma vez ao cinema — assim como questionaria a respeito de um costume extinto de gerações passadas. Os pequenos nem sabem do que se trata, e nunca viram uma câmera de perto. Pelo contrário, demonstram medo diante do aparelho. O temor é motivado, em certa medida, pelo desconhecimento, mas também por intuírem o poder das imagens em tempo de celulares pessoais e redes sociais.

Antes de se lançar país afora, disseminando a boa palavra da sétima arte, ele pede a bênção da mãe. Esta confessa que muitos conhecidos consideram o garoto “inútil”, por se dedicar à paixão por imagens. No entanto, consente com o périplo do filho, desejando apenas a sua felicidade. O artista mergulha então naquilo que equivale, aos seus olhos, a uma jornada messiânica em nome do cinema. É preciso não apenas educar, mas também sensibilizar, formar plateia, conservar películas, restaurar materiais, conscientizar a respeito da importância da história audiovisual de uma nação.

O documentário se veste de um caráter militante, pragmático e intervencionista. A simples existência do projeto constitui uma proeza.

O documentário se veste, portanto, de um caráter assumidamente militante, pragmático e intervencionista. Ele pretende informar o espectador acerca do descaso cultural na Guiné, estimulando demandas de proteção e revertendo a crise. Muitos críticos e teóricos torcem o nariz, com argumentos justificáveis, para a arte panfletária, assim como para o ativismo que utiliza o cinema enquanto meio, ao invés de finalidade. No entanto, diante da falta de oportunidades disponíveis a Diallo, seu filme-provocação constitui uma saída astuta e relativamente barata para chamar atenção ao problema. A simples existência do projeto constitui uma proeza.

Em paralelo, o aspecto de urgência fervorosa que costuma acompanhar os panfletos políticos se dissipa diante do teor leve e humorístico impresso pelo autor. Ele se transforma num diretor-espetáculo, colocando-se em cena, comentando, provocando e entrevistando pessoas. Ora se lamenta, ora dispara tiradas cômicas. Guardadas as proporções (e as lacunas ideológicas), remete ao trabalho feel good e popular de documentaristas como Michael Moore e Morgan Spurlock. Diallo toma para si a tarefa hercúlea de lutar pelo cinema e, tal qual um Dom Quixote, parte para lutar com seus moinhos.

No percurso, encontra galpões com películas cobertas de poeira; escuta histórias a respeito de milhares de latas incendiadas; conversa com antigos professores de artes e cineastas guineenses. Diallo elege um símbolo-maior de sua travessia, seu próprio Graal: a descoberta do Mouramani, curta-metragem de 1953 que teria sido o primeiro filme africano. No entanto, a película está perdida, e o jovem não consegue encontrar uma pessoa sequer que tenha assistido à obra. Ela não está catalogada em arquivos da Guiné, dos demais países africanos, e nem na França. “Este filme é um mito?”, pergunta a diversos homens experientes, que respondem negativamente, quase ofendidos pela sugestão. É claro que não. O filme realmente existiu, mas se perdeu, por não ter sido valorizado em sua época. “Nós não temos a cultura dos arquivos”, conclui um pensador.

O título deste curta-metragem perdido será evocado dezenas de vezes, visto que a montagem insiste em incluir a pergunta de Diallo, repetida a arquivistas e artistas. Trata-se de uma forma de reforçar a existência do filme na base da persistência e da ludicidade, a exemplo de um professor dedicado da escola primária. Outra repetição se encontra nos planos dos pés descalços do cineasta, que percorre países e vilarejos sem colocar calçados — supostamente, por não ter dinheiro para comprá-los. No entanto, ele converte os pés sobre o chão em ícone do descaso cultural: na Guiné, os artistas nem podem se vestir adequadamente. A figura do peregrino religioso, desprendido da riqueza material, também vem à mente.

É certo que esta persona ficcionalizante corresponde a uma imagem autoelogiosa e heróica, do tipo que poderia colher frutos depois — no Brasil, tal figura histriônica e popularesca se candidataria a deputado federal nas eleições seguintes. O autor nunca se permite cair em contradições, demonstrar irritações, cansaço, falta de conhecimentos. Pelo contrário, apresenta a si próprio enquanto sujeito engraçado, sempre otimista e disposto, vestido de homem-sanduíche pelas ruas de Paris, avisando aos passantes de sua busca pelo Mouramani

Esta estratégia possui limitações: seria improvável que encontrasse a película rara por acaso, por meio de um pedestre. No Cemitério do Cinema encontra suas limitações no caráter retórico e autopromocional do diretor, convertido em showman, espécie de circo de um homem só. No entanto, interessa no aspecto conceitual de realizar um filme sobre o não-filme, representando a ausência de políticas culturais na Guiné por um espetáculo educativo que inclui câmeras de papelão, encenações amigáveis e conversas provocadoras. 

Trata-se de um cinema simbólico, que pretende se valorizar pelo gesto, ao invés das conquistas — algo que poderia soar como um contrassenso para a obra destinada, num primeiro momento, a exercer influência direta no meio. Na ausência do Mouramani real, Diallo constrói o seu, na forma de filme-homenagem, filme-pastiche, filme-memória. A conclusão com o close-up efetuado por uma câmera real sobre a câmera de papelão resume de maneira eficaz o ideal do cineasta, preocupado em enaltecer o faça-você-mesmo de modo vaidoso, com seu rosto no centro do quadro.

Sobretudo, o longa-metragem merece ser reconhecido pela vontade de estabelecer uma comunicação clara e direta com o público médio. O cineasta poderia efetuar um filme mais polido e hermético, reservado aos festivais estrangeiros. Apesar de ter sido exibido em Berlim e Curitiba, este longa-metragem de estreia tem potencial de interessar aos guineenses. Suas imagens são acessíveis, e a autoexposição do jovem funciona como elemento de fácil identificação. A obra almeja um alcance popular, um contato direto com pessoas pouco familiarizadas com o cinema. Pela preocupação em voltar a dialogar com o público, adquire uma relevância que talvez um documentário mais exaustivo e profundo não alcançasse.

No Cemitério do Cinema (2023)
7
Nota 7/10

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