Novocaine: À Prova de Dor (2025)

Todo homem pode ser herói

título original (ano)
Novocaine (2025)
país
EUA, Canadá, África do Sul
gênero
Comédia, Ação
duração
110 minutos
direção
Dan Berk, Robert Olsen
elenco
Jack Quaid, Amber Midthunder, Ray Nicholson, Jacob Batalon, Batty Gabriel, Matt Walsh, Conrad Kemp
visto em
Cinemas

A existência deste longa-metragem parte da profunda curiosidade e fascinação pela CIPA, ou Insensibilidade Congênita à Dor. As pessoas com tal diagnóstico não sentem dor, o que significa que podem estar feridas sem saber, ou sofrendo alguma condição interna grave, mas não alertarem os médicos a tempo. A expectativa de vida para indivíduos em tais condições é bastante reduzida. Diante deste quadro, o roteirista Lars Jacobson e os diretores Dan Berk e Robert OIsen imaginam uma fábula de superação e empoderamento masculino.

Eles operam na chave da caricatura, exagerando os traços positivos e negativos para finalidade cômica. Nas primeiras cenas, Nate (Jack Quaid) é descrito unicamente pela doença. Descobrimos que ele não ingere alimentos sólidos, porque poderia morder a língua, e mantém um alarme que o relembra de aliviar a bexiga. Não possui amigos nem namorada, e amarga um histórico de bullying na escola. Além disso, dedica-se a um trabalho tedioso no banco, anunciando o confisco de bens de clientes inadimplentes.

Somos convidados a nutrir piedade por este homem, preso a uma condição crônica. Ele é visto como frágil, emasculado, solitário (nem mesmo os pais estão por perto). Pelo menos, até o cinema de ação lhe oferecer a oportunidade habitual para o cinema deste gênero: um convite repentino à hombridade. Subitamente, a moça que o funcionário acaba de conhecer, e por quem já está completamente apaixonado, é sequestrada durante um assalto. Caberá ao tipo introvertido e excessivamente polido descobrir seus músculos, sua força e seu caráter de salvador.

Novocaine: À Prova de Dor é um filme cínico, ou mesmo niilista, nesta crença de que pouco importam as leis, a ordem, a moral, a possível agressão aqui e acolá. Dane-se que Nate saia profundamente ferido — o roteiro importa-se tanto com o rapaz ridicularizado quanto com os vilões caricaturais.

Logo, a CIPA se converte na chave para a redenção do homem comum que pode, enfim, se sentir especial. As características que o tornavam frágil convertem-se em superpoderes. Nate é um novo X-Men: leva socos e chutes, sem emitir gritos, nem gemidos. O rapaz queima a mão, fratura os ossos, leva flechadas no corpo, bolas de ferro nas costas, e muitos outros golpes que produziriam uma lista interminável. O roteiro se diverte ao pensar que o status de saco de pancadas pode se converter, ironicamente, na vantagem deste herói, que sofre sem sentir dor. Ele está muito próximo do Mickey de Robert Pattinson, em Mickey 17, enquanto anti-heróis cujo diferencial reside em sua constituição patética.

Os blockbusters do gênero sempre procuraram ferramentas para tornar a violência inconsequente e, portanto, legítima. Superman destrói uma cidade inteira durante a luta, mas o faz pelo bem maior. Jason Statham arruína carros, comércios e prédios em suas lutas, porém, está perseguindo um vilão. Os brucutus de Velozes e Furiosos explodem locações pelos ares, em seu direito de revidar contra poderosos bandidos. Sempre se buscou uma validação moral para mandar a comunidade às favas em nome do direito individual de honra e de justiça/vingança. O resto do mundo que se dane: preciso acertar contas com meu desafeto primeiro.

O problema, no caso de Novocaine: À Prova de Dor, encontra-se no fato de as destruições, explosões e caos serem revertidos sobre o corpo do protagonista. A certa altura da trama, enquanto persegue ladrões, o rapaz decide socar cacos de vidro, apenas para desferir um golpe ainda mais letal no adversário. Ignora-se o fato que, apesar de não sentir dor, Nate ainda sangra e corre sérios riscos de morte (fragilidade que o filme convenientemente esquece, após a introdução). Este corpo-boneco, corpo-espantalho, pode se quebrar e remontar, perfurar e seguir em frente, queimar no óleo fervente e continuar dirigindo. 

Assim, o humor decorre da autoflagelação e da tortura. Sim, o contexto se reveste da liberdade onírica da fantasia, junto à improbabilidade da comédia. Em outras palavras, nunca soa real. O filme jamais defende que as pessoas se firam, por exemplo — o questionamento não se localiza aí. No entanto, o caráter de superpotência dos heróis tradicionais de filmes de ação, que apanham, mas continuam sua jornada sem reclamações, é elevado à enésima potência, ao limite do cinismo. Os personagens de Jason Statham, Dwayne Johnson e Liam Neeson continuam combatendo porque são fortes, viris, e aguentam a dor. Nate segue em frente porque não sente dor. Trata-se de contextos bem diferentes.

O texto brinca igualmente com a polidez de um homem confrontado à brutalidade do crime. O jovem ataca inimigos, mas pede desculpas, e tenta negociar uma saída diplomática com os homens tentando matá-lo. Ele representa uma espécie de domesticação do instinto selvagem, um senso plácido de seguir as regras e evitar o conflito, até ser forçado a descobrir a fera que toda masculinidade carregaria dentro de si. Traduzindo em linguagem ultra contemporânea, Nate seria um representante da cultura woke, aprendendo a se tornar “macho de verdade” face aos bandidos. Como recompensa, ganhará a mocinha.

Inserido numa linha temporal do cinema, o projeto dialoga diretamente com o início do cinema queer, quando Harold Lloyd interpretava sujeitos engomadinhos, de óculos, criados pela avó. Em Grandma’s Boy (1922), ele era encorajado a bater, a revidar, a voltar para casa com machucados e roupa bagunçada. Assim, ganhava de presente a mocinha que prontificada a casar com ele. Não mudamos muito na percepção do heroísmo, ao longo de mais de cem anos. Ainda encontramos formas espetaculares e mágicas de converter homens em machos, acreditando que a ordem social deva ser regida por seus impulsos individuais. A sociedade pertence aos homens que, por conseguirem se machucar, ganham o direito de machucar os outros. Uma meritocracia da violência.

“Nada vai acontecer com você. Você é um homem branco, trabalhando num banco”. Algumas raras piadas do gênero satirizam o funcionamento social, que o próprio roteiro defende, no final. Novocaine: À Prova de Dor é um filme um tanto cínico, ou mesmo niilista, nesta crença de que pouco importam as leis, a ordem, a moral, a possível agressão aqui e acolá. Dane-se que Nate saia profundamente ferido — o roteiro importa-se tanto com o rapaz ridicularizado quanto com os vilões caricaturais. Nesta briga entre mocinhos e vilões, torce pela briga. O discurso quer que o mundo se exploda, desprezando as possíveis baixas no processo. Neste sentido, representa uma forma bastante contemporânea de diversão, capaz de entreter não apesar de sua apatia e indiferença pelos outros, mas justamente por causa dela.

Novocaine: À Prova de Dor (2025)
5
Nota 5/10

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